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terça-feira, 29 de março de 2011

Civilidade

Fuck You, Marion Peck

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.


Alberto Pimenta, Ascensão de Dez Gostos à Boca (1977)

Wrong

Tornamo-nos odiados tanto fazendo o bem como fazendo o mal

Maquiavel

terça-feira, 22 de março de 2011

Preciso de tempo

Dora Maar, Les années vous guettent - Nush Eluard, 1932

Preciso de tempo necessito desse tempo
que outros deixam abandonado
porque lhes sobra ou já não sabem
que fazer com ele
tempo
em branco
em vermelho
em verde
até em castanho escuro
não me importa a cor
cândido tempo
que não posso abrir e fechar
como uma porta
tempo para olhar uma árvore um farol
para andar pelo fio do descanso
para pensar que bom que hoje é Inverno
para morrer um pouco
e nascer em seguida
e dar-me conta
e dar-me corda
preciso do tempo necessário para
chapinhar umas horas na vida
e para investigar por que estou triste
e acostumar-me ao meu esqueleto antigo
tempo para esconder-me
no canto de um galo
e reaparecer num relincho
e para estar em dia
e para estar em noite
tempo sem recato e sem relógio
vale dizer preciso
ou seja necessito
digamos que me faz falta
tempo sem tempo

Mario Benedetti

domingo, 20 de março de 2011

duas vezes a mesma vida

No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus eus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são conveninentes esquecendo deliberado as outras. E são elas - serão elas? - que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.

Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir. Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita...

Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingénua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência..."

Caio Fernando Abreu, in O Inventário do Ir-remediável

sábado, 19 de março de 2011

minha verdade

O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre em cima a fingir de música suprema!

Eugénio de Andrade

Truth Lies at the Bottom of the Well, de Frances MacDonald McNair

sexta-feira, 18 de março de 2011

Parvulesco

A estupidez coloca-se na primeira fila para ser vista; a inteligência coloca-se na rectaguarda para ver.

Bertrand Russell


À bout de souffle, de Jean-Luc Godard, 1960

quarta-feira, 16 de março de 2011

Para meus olhos, quando chorarem

"Para meus olhos, quando chorarem,
terem belezas mansas de brumas,
que na penumbra se evaporarem...
Para meus olhos, quando chorarem,
terem doçuras de auras e plumas...

E as noites mudas de desencanto
se constelarem, se iluminarem
como os astros mortos, que vêm no pranto...

As noites mudas de desencanto...
Para meus olhos, quando chorarem...
Para meus olhos, quando chorarem,
terem divinas solicitudes
pelos que mais se sacrificarem...
Para meus olhos, quando chorarem,
verterem flores sobre os paludes...

Para que os olhos dos pecadores
que os humilharem, que os maltratarem
tenham carinhos consoladores,
Se, em qualquer noite de ânsias e dores,
os olhos tristes dos pecadores
para os meus olhos se levantarem."

Cecília Meireles

Cries and Whispers


Cries and Whispers, de Ingmar Bergman, 1972

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Sibila

Sibila Palmifera, Dante Gabriel Rossetti


Se o destino futuro ela planeia, todo em folhas,
Como Sibila, insubstancial, fugidia felicidade;
À primeira rajada desvanece-se no ar.
* * * *
Como os planos mundanos parecem folhas de Sibila,
Assim livros de Sibila parecem os dias do homem,
O preço crescendo quando o número diminui.

Edward Young, Pensamentos Nocturnos (1742)

" De regresso à terra, Eneias disse à Sibila: «Sejas uma deusa ou uma mortal amada dos deuses, por mim serás sempre tida em reverência. Quando chegar ao ar superior mandarei construir um templo em tua honra e eu mesmo levarei oferendas.» «Não sou uma deusa», disse a Sibila; «não reclamo sacrifícios ou oferendas. Sou mortal, todavia, se tivesse aceite o amor de Apolo, poderia ter sido imortal. Ele prometera-me a realização do meu desejo se eu consentisse em ser sua. Eu peguei numa mão cheia de areia e disse: «Concede-me tantos aniversários quantos grãos de areia há na minha mão». Infelizmente esqueci-me de pedir a juventude permanente. Também isto ele teria concedido se eu aceitasse o seu amor mas, ofendido com a minha recusa, permitiu que eu envelhecesse. A minha juventude e a minha força juvenil fugiram há muito. Vivi já setecentos anos e, para igualar o número de grãos de areia, tenho ainda de ver trezentas Primaveras e trezentas colheitas. O meu corpo encolhe com o passar dos anos e, em seu devido tempo, deixarei de ser vista, mas a minha voz permanecerá e as gerações futuras respeitarão as minhas palavras.»

Estas palavras finais da Sibila aludiam ao seu poder profético. Na sua caverna costumava ela inscrever em folhas colhidas das árvores os nomes e os destinos dos indivíduos. As folhas assim inscritas estavam arranjadas por ordem dentro da cave e podiam ser consultadas pelos seus devotos. Mas se por acaso, ao abrir-se a porta, o vento entrasse e dispersasse as folhas, a Sibila não ajudava a restaurá-las e o oráculo estava irremediavelmente perdido.

Thomas Bulfinch, A Idade da Fábula

El Cant de la Sibilla - Jordi Savall - voz de Montserrat Figueras

terça-feira, 8 de março de 2011

Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.

Octavio Paz



Monika e o Desejo, de Ingmar Bergman, 1952

Carnaval

"Estarei só. Não por separada, não por evadida. Pela natureza de ser só. No entanto a multidão tem sua música, seu ritmo, seu calor, e deve ser uma felicidade, às vezes, ser na multidão o que o peixe é no oceano. Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes! ...Se me chamares, responderei, mas serei solidão. Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares. Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei: como o eco. Mas és tu que vens e voltas: a tua solidão e a minha solidão."

Cecília Meireles


À propos de Nice, de Jean Vigo, 1930

domingo, 6 de março de 2011

On / Off


Pena é não haver um manicómio para corações, que para cabeças há muitos.

Florbela Espanca

sábado, 5 de março de 2011

Persona

"(…) na realidade não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer. O equívoco reside numa falsa analogia. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma."

Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

Persona (1966), de Ingmar Bergman, é o jogo de espelhos mais fascinante que já vi em cinema.
Elizabeth Vogler, uma actriz com um esgotamento, é acompanhada pela enfermeira Alma. A silenciosa Elizabeth escuta e parece absorver as confidências de Alma até ao ponto desta não conseguir distinguir mais onde acabam os seus pensamentos e começam os da sua paciente.

Não há verdade

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça...  Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

Jorge de Sena



Persona, de Ingmar Bergman, 1966

Beleza Indizível

Imogen Cunningham, Twinka, 1974


Tu não estás em ti, beleza indizível, estás em mim.

Juan Ramón Jiménez


Judy Bater, Imogen Cunningham e Twinka Thiebaud, 1974

Depus a Máscara

Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos


Cartier-Bresson

quinta-feira, 3 de março de 2011

Deus deu-vos uma cara e vós fazeis outra*

* William Shakespeare


Que contraste flagrante entre a susceptibilidade da maioria das pessoas à mais ténue alusão de censura a seu respeito, e aquilo que ouviriam de si, caso surpreendessem as conversas dos seus conhecidos! Deveríamos, antes, ter em mente que a polidez habitual é apenas uma máscara burlesca; desse modo, não gritaríamos tão alto todas as vezes que esta fosse deslocada ou retirada por um breve instante. Todavia, quando se torna de facto rude, é como se tivesse despido todas as suas roupas e se postasse de nós in puris naturalibus. Decerto, assim o fazendo, desempenha uma figura bastante feia, como a maioria dos homens nesse estado.


Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
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