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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

About the meaning of life #7

A poesia é a vida? pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
- e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo de um poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.

Alexandre O'Neill


Mad World - versão de Gary Jules

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

J'attendrai

O reflexo de teu rosto já é outro
no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão.
A numerosa nuvem que se desfez no poente
é nossa imagem.

Jorge Luís Borges

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal à beira-rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Anaíta

III

Pontualmente uma árvore de ouro
nasce onde o sémen do homem
e o curso de água feminino
se fundem e as sombras se somem.

Verdura dos olhos de Anaíta
por nossas carícias semeada
que passeios de tílias nas cidades
para a pureza do encontro guarda.

Anaíta que a raiz do homem
na terra da mulher prepara
e as extremidades do mundo
num ramo de amor ata.

Anaíta que as árvores conhecem
por seu nome próprio de mirtos
e como risos as aves voam
seu fresco bater de cílios.

Matrona que à cabeça traz
a abismada bilha nos espaços
pomo celeste que se destila
no alambique dos afagos.

Anca do mundo requebrada
estrela que guarda em seu lenço
os beijos com que sopramos
a nossa bolha de silêncio.

Ouvido que o crescer dos abetos
no bosque da cópula escuta.
Mulher! oh rito de Anaíta
mistério de ser virgem e puta.

Natália Correia in Mátria

Brassai

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Transparência do sonho

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos.

Al Berto















Jeremy Irons em Richard II, Royal Shakespeare Company, 1986

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Dreams That Money Can Buy

Dreams That Money Can Buy é um filme experimental de 1947, escrito, produzido e realizado pelo surrealista Hans Richter. Nomes como Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray, Alexander Calder, Darius Milhaud e Fernand Léger, contam-se entre os seus colaboradores e o filme ganhou o prémio de Melhor Contribuição Original para o Progresso da Cinematografia, no Festival de Veneza, em 1947.

Joe/Narciso é um homem vulgar que acabou de assinar um complicado contrato de aluguer. Enquanto pensa como vai conseguir pagar a renda, descobre que é capaz de ver tudo o que se passa na sua mente ao olhar-se directamente no espelho.



Decide aplicar o seu dom aos outros ("If you can look inside yourself, you can look inside anyone!"), e estabelece um negócio, vendendo sonhos à medida a uma variedade de clientes frustrados e neuróticos.

Cada uma das sete sequências de sonhos é criada por um artista avant-garde e/ou surrealista:

Desejo: Max Ernst
A Rapariga com o Coração Pré-fabricado: Fernand Léger
Ruth, Rosas e Revólveres: Man Ray
Discos: Marcel Duchamp
Ballet: Darius Milhaud
Circo: Alexander Calder
Narciso: Hans Richter


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Estátuas e Espelhos


La Double Vie de Veronique, de Kieslowski, 1991

domingo, 12 de dezembro de 2010

Lunática

A Lua, personificação do capricho, olhou pela janela enquanto dormias no teu berço, e disse consigo mesma:
"Gosto desta criança".

E desceu solenemente a sua escadaria de nuvens e passou sem ruídos através das vidraças. E depois envolveu-te com a ternura flexível duma mãe, depondo-te no rosto as suas cores. Daí as tuas pupilas ficarem verdes, e as tuas faces extaordinariamente pálidas. Foi ao contemplares essa visitante que os teus olhos tão bizarramente se dilataram; e ela estreitou-te o peito com tanto amor que tu ficaste para sempre com vontade de chorar.

Entretanto, na expansão da sua alegria, a Lua enchia todo o teu quarto com uma atmosfera fosforescente, como um veneno luminoso; e toda essa luz viva pensava e dizia: "Hás-de sofrer eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira. Amarás aquilo que eu amo e aquilo porque sou amada: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar imenso e verde; a água informe e multiforme; o lugar onde não estejas; o amante que não conheças; as flores monstruosas, os perfumes que fazem delirar; os gatos que se espreguiçam sobre os pianos e gemem como mulheres, com uma voz rouca e suave!

"E tu serás amada pelos amantes, cortejada pelos meus cortesãos. Tu serás a rainha dos homens de olhos verdes, cujo peito igualmente estreitei nas minhas carícias nocturnas; daqueles que amam o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que eles não conhecem, as flores sinistras que se semelham a turíbulos duma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os animais selvagens e voluptuosos que são emblemas da sua loucura".

E é por isso, maldita e adorada criança mimalha, que eu estou agora deitado a teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temerosa Divindade, da fatídica madrinha, da ama peçonhenta de todos os lunáticos.

in O Spleen de Paris, de Charles Baudelaire


Madeline von Foerster

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Beira-rio

We must leave before the dream ends.

Oscar Wilde


Agnes Obel - Riverside

domingo, 5 de dezembro de 2010

Soneto da Separação

De repente do riso fez-se pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes in O Poeta Apresenta o Poeta


Broken Social Scene - Lover's Spit

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Lilith


A imagem de Lilith, sob o nome de Lilitu, apareceu primeiramente representando uma categoria de demónios ou espíritos de ventos e tormentas, na Suméria, por volta de 3000 A.C. Por ser associada ao vento, pensava-se que ela era portadora de mal-estares, doenças e mesmo da morte. Ela é também associada a um demónio feminino da noite, na antiga Mesopotâmia. Muitos acreditam que há uma relação entre Lilith e Inanna, deusa suméria da guerra e do prazer sexual.

Segundo o Zohar (comentário rabínico dos textos sagrados), Eva não é a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou Adão, ele fê-lo macho e fêmea, depois cortou-o ao meio, chamou a esta nova metade Lilith e deu-a em casamento a Adão. Mas Lilith recusou, não queria ser oferecida a ele, tornar-se desigual, inferior. Na modernidade, isso levou à popularização da noção de que Lilith foi a primeira mulher a rebelar-se contra o sistema patriarcal.

Assim dizia Lilith: ‘‘Por que devo deitar-me debaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Porquê ser dominada por ti? Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.’’ Mas Adão se recusava a inverter as posições, consciente de que existia uma "ordem" que não podia ser transgredida. E assim, ela abandonou o Éden - é o momento em que o Sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturna, tal como na ocasião em que Deus fez vir ao mundo os demónios.

Três anjos foram enviados no seu encalço, porém Lilith recusou-se a voltar. E mesmo depois de abandonar o seu marido, ela não aceitava Eva, a sua segunda mulher, e tentaria destruir a humanidade, os filhos do adultério de Adão com Eva. Perseguiria então os homens, principalmente os adúlteros, crianças e recém-casados para se vingar.

Lilith, de John Collier

Lilith afirmou-se como um demónio e é o seu carácter demoníaco que leva a mulher a contrariar o homem e a questionar o seu poder. Desde então, Lilith tornou-se a noiva de Samael, o senhor das forças do mal.

Na tradição medieval, Lilith é muito citada entre as superstições de camponeses, por exemplo, ter um amuleto com o nome dos 3 anjos que a perseguiram para fora do Éden, Sanvi, Sansavi e Samangelaf para protecção, assim como acordar o marido que sorrisse durante o sono, pois ele estaria sendo seduzido por Lilith.

Assim surgiram as lendas vampíricas: Lilith tinha 100 filhos por dia, súcubus quando mulheres e íncubus quando homens, ou simplesmente lilims. Eles se alimentavam da energia do acto sexual e de sangue humano. Também podiam manipular os sonhos humanos, sendo os geradores das poluções noturnas. Uma vez possuído por uma súcubus, dificilmente um homem sobrevivia.

Há certas particularidades interessantes nos ataques de Lilith, como o aperto esmagador sobre o peito, uma vingança por ter sido obrigada a ficar por baixo de Adão, e a sua habilidade de cortar o pénis com a vagina, segundo os relatos católicos medievais. Conta-se, por exemplo, que Lilith surpreendia os homens durante o sono e os envolvia com toda a sua fúria sexual, aprisionando-os na sua lasciva demoníaca, e causando-lhes orgasmos demolidores. Aqueles que resistiam e não morriam, ficavam exangues e acabavam por adoecer. Por isso Lilith também está identificada com o tradicional vampiro.

Ao mesmo tempo que ela representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina.

Lilith, de Dante Gabriel Rosseti

Algumas vezes Lilith é associada à deusa grega Hécate, "A mulher escarlate", um demónio que guarda as portas do inferno montada num enorme cão de três cabeças, Cérbero. Hécate, assim como Lilith, representa na cultura grega a vida nocturna e a rebeldia da mulher sobre o homem. Lilith também é considerada um dos Arquidemónios, símbolo da vaidade.

Nos dois últimos séculos, a imagem de Lilith começou a transformar-se em certos círculos intelectuais seculares europeus, na literatura e nas artes, quando os românticos passaram a considerar mais a imagem sensual e sedutora de Lilith, em contraste com a tradicional imagem demoníaca, nocturna, devoradora de crianças, causadora de pragas, depravação e vampirismo.



Metropolis, de Fritz Lang, 1927
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