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domingo, 28 de novembro de 2010

Benção

Remedios Varo, Música Solar, 1955

Bem hajas, ó luz do sol,
Dos órfãos gasalho e manto,
Imenso, eterno farol
Deste mar largo de pranto!

Tomás Ribeiro

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sophia

Quando eu morrer voltarei para buscar,
os instantes que não vivi junto do mar.



Filme de João César Monteiro, 1970

domingo, 21 de novembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010

Algures fora do Mundo

Esta vida é um hospital onde cada enfermo está possuído do desejo de mudar de cama. Este queria sofrer defronte do fogão, e aquele crê que se curava ao lado da janela. A mim parece-me que estaria sempre bem no lugar em que não estou, e este problema de mudar-me é uma coisa que não cesso de discutir com a minha alma.

"Dize-me tu, minha alma, pobre alma friorenta, que pensarias tu de viver em Lisboa? Deve lá fazer calor, e podias regalar-te como um lagarto. A cidade ergue-se à beira d'água; dizem que é construída de mármore, e que o povo tem tanto ódio ao vegetal que arranca todas as árvores. Eis uma paisagem a teu gosto; uma paisagem feita de luz e de mineral, com o líquido para os reflectir!"

A minha alma não responde.

"Visto que tanto gostas do repouso juntamente com o espectáculo do movimento, queres tu ir viver para a Holanda, essa terra beatificante? Talvez venhas a divertir-te nesse país cujas imagens tantas vezes admiraste nos museus. Que pensarias tu de Roterdão, tu que amas as florestas de mastros, e os navios atracados ao pé das casas?"

A minha alma fica muda.

"Batávia sorrir-te-ia talvez mais? Encontraríamos lá o espírito da Europa casado com a beleza tropical".

Nem uma palavra.- Estará morta a minha alma?

"Terás então chegado a tal grau de entorpecimento que não te comprazes senão com o teu mal? Se assim é fujamos para os países que são analogias da morte.- Já sei o que nos convém, pobre alma! Fazemos as malas para Tornéo. Vamos para mais longe ainda, se é possível: instalemo-nos no pólo. Lá o sol mal roça obliquamente pela terra, e as lentas alternativas da luz e da noite suprimem a variedade e aumentam a monotonia, essa metade do nada. Lá poderemos tomar longos banhos de trevas enquanto, para nos divertirem, as auroras boreais nos levarão de tempos a tempos as suas girândolas cor-de-rosa, lembrando  reflexos dum fogo de artifício do Inferno!"

Por fim a minha alma explode, e grita-me ajuizadamente: "Seja para onde for! Seja para onde for! contanto que seja para fora deste mundo!"

in O Spleen de Paris - pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire

Arnold Boecklin, Island of the Dead, 1880

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Rosa

Não ascendo a rosa.
Fico por espinho, crosta, remorso.

Lição do gesto
de quem retira a mão,
gotejando sangue,
em castigo
de querer possuir
a beleza da flor.

Me sufoca o ser,
me assusta o querer ser.

O que mais quero ter
é a impossibilidade do ter.

Mia Couto, idades cidades divindades

Frances MacNair, Choice, 1909

















segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

O Espelho

Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas (c. 1503-1510) - Inferno (detalhe)

Sob o manto do Diabo, a mulher é acossada por uma criatura cuja face é um espelho que a reflecte.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Ver claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade, Poesia


Clogs - "Lantern"

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 4ª e última parte

Desde então, continua a dar-me pancadas com o guarda-chuva na cabeça. Que eu saiba, jamais dormiu nem comeu nada. Limita-se simplesmente a bater-me. Acompanha-me em todos os meus actos, até nos mais íntimos. Lembro-me de que, a princípio, as pancadas me impediam de conciliar o sono; agora, creio que, sem elas, ser-me-ia impossível dormir.

Todavia, as nossas relações nem sempre foram as melhores. Muitas vezes lhe pedi, em todos os tons possíveis, que me explicasse o seu comportamento. Foi inútil: silenciosamente continuava a bater-me com o guarda-chuva na cabeça. Em muitas ocasiões lhe preguei murros, pontapés e - Deus me perdoe - até guardachuvadas. Ele aceitava as pancadas com mansidão, aceitava-as como fazendo também parte da sua tarefa. E este é exactamente o lado mais alucinante da sua personalidade: essa espécie de tranquila convicção no seu trabalho, essa carência de ódio. Enfim, essa certeza de estar a cumprir uma missão secreta e superior.

Pese embora a sua ausência de necessidades fisiológicas, sei que, quando lhe bato, sente dor, sei que é frágil, sei que é mortal. Sei também que um tiro me livraria dele. O que ignoro é se o tiro irá matá-lo a ele ou matar-me a mim. Também não sei se, quando estivermos ambos mortos, não continuará a dar-me com o guarda-chuva na cabeça. Seja como for, este raciocínio é inútil: reconheço que não me atreveria nem a matá-lo nem a matar-me.

Por outro lado, nos últimos tempos compreendi que não poderia viver sem as suas pancadas. Agora, cada vez com mais frequência, atormenta-me certo pressentimento. Uma nova angústia me corrói o peito: a angústia de pensar que, quando ele me fizer mais falta, se irá embora, e eu não mais sentirei as suaves guardachuvadas que me faziam dormir tão profundamente.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº9, 1º semestre de 2004

domingo, 7 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 3ª parte

Ele postou-se, de pé, a meu lado: com a mão esquerda segurava-se à pega de couro; com a direita brandia implacável o guarda-chuva. Os passageiros começaram por trocar tímidos sorrisos. O condutor pôs-se a observar-nos pelo espelho. Pouco a pouco avolumou-se uma grande gargalhada, uma gargalhada estrondosa, interminável.

Eu, com a vergonha, corei que nem um pimento. O meu perseguidor, alheio aos risos, continuou com as pancadas.

Desci - descemos - na ponte do Pacífico. Seguíamos pela avenida Santa Fé. Todos se voltavam estupidamente para nos olhar. Pensei em dizer-lhes: "Que é que estão a olhar, imbecis? Nunca viram um homem a bater na cabeça de outro com um guarda-chuva?". Mas também pensei que nunca teriam visto tal espectáculo. Cinco ou seis miúdos puseram-se a seguir-nos, gritando como energúmenos.

Mas eu tinha um plano. Chegado a casa, decidi fechar-lhe bruscamente a porta nas ventas. Não consegui: ele, com mão firme, antecipou-se, agarrou a maçaneta, deu um empurrão e entrou comigo.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº 9, 1º semestre de 2004

sábado, 6 de novembro de 2010

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 2ª parte

Porque, de facto, o homem não me pregava propriamente guardachuvadas; eram antes leves pancadas o que me aplicava, absolutamente indolores. É claro que tais pancadas são tremendamente incómodas. Todos sabemos que, quando uma mosca nos pousa na testa, não sentimos dor nenhuma: sentimos desconforto. Ora bem, aquele guarda-chuva era uma gigantesca mosca que, a intervalos regulares, pousava, uma vez e outra, na minha cabeça.

Convencido de que me achava perante um louco, resolvi afastar-me. Mas o homem seguiu-me em silêncio, sem parar de bater. Desatei então a correr (aqui devo salientar que há poucas pessoas tão rápidas como eu). Ele lançou-se em minha perseguição, procurando em vão assestar-me uma pancada. E o homem ofegava, ofegava, ofegava, e arquejava tanto que pensei que, se continuasse a obrigá-lo a correr assim, o meu torturador cairia morto ali mesmo.

Por isso deixei a correria e retomei o passo. Olhei-o. No seu rosto não havia nem gratidão nem censura. Só me dava com o guarda-chuva na cabeça. Pensei em apresentar-me na esquadra, dizer: "Senhor comandante, este homem está a dar-me com um guarda-chuva na cabeça". Seria um caso sem precedentes. O comandante olhar-me-ia desconfiado, começaria a fazer-me perguntas embaraçosas, talvez acabasse por prender-me.

Achei melhor voltar para casa. Meti-me no autocarro 67. Ele, sem deixar de dar-me pancadas, subiu atrás de mim. Sentei-me no primeiro banco.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº9, 1º semestre de 2004

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 1ª parte

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça. Faz hoje exactamente cinco anos que começou a dar-me com guarda-chuva na cabeça. Nos primeiros tempos não conseguia suportá-lo; agora estou habituado.

Não sei como se chama. Sei que é um homem vulgar, de fato cinzento, alguns cabelos brancos, um rosto vago. Conheci-o há cinco anos, numa manhã de calor. Eu estava a ler o jornal, à sombra de uma árvore, sentado num banco da mata de Palermo. De repente senti que qualquer coisa me tocava na cabeça. Era este mesmo homem que, agora, enquanto estou a escrever, continua mecânica e indiferentemente a dar-me guardachuvadas.

Naquele momento virei-me cheio de indignação: ele continuou a aplicar-me pancadas. Perguntei-lhe se estava doido: nem pareceu sequer ouvir-me. Então ameacei-o de ir chamar um guarda: imperturbável e sereno, prosseguiu a sua tarefa. Depois de uns instantes de indecisão, e vendo que ele não desistia da sua atitude, pus-me de pé e preguei-lhe um soco na cara. O homem, exalando um ténue gemido, caiu no chão. De imediato, e fazendo, ao que parecia, um grande esforço, levantou-se e voltou silenciosamente a dar-me com o guarda-chuva na cabeça. O nariz sangrava-lhe, e nesse momento tive pena do homem e senti remorsos de tê-lo agredido daquela maneira.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº 9, 1º semestre de 2004
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