Letters swallow themselves in seconds. Notes friends tied to the doorknob, transparent scarlet paper, sizzle like moth wings, marry the air. So much of any year is flammable, lists of vegetables, partial poems. Orange swirling flame of days, so little is a stone. Where there was something and suddenly isn’t, an absence shouts, celebrates, leaves a space. I begin again with the smallest numbers. Quick dance, shuffle of losses and leaves, only the things I didn’t do crackle after the blazing dies. Naomi Shihab Nye, Words Under the Words: Selected Poems
For the end For the bus To go For the bathroom For a sign For a table For a chance On a friend For the rain to end For an answer For the climax For the full story For the solution To hear For the phone to ring For the sun to go down To come For the commercial For the credits to roll For my name to be called For the weekend On line For the bill For the cure In vain Justine Hermitage
Tinha o que merecia. No cinema não encontraria melhor. Nos livros, talvez. Relações ilícitas no século dezanove. Gente para quem a carne era coisa de putas e de pobres, mulheres pagas para limpar o chão e abrir as pernas. Parir, se tivesse de ser, algures na província, por entre porcos e paredes de pedra. O resto era consigo. Conseguia ver-se, sozinha com a criança, a avançar pelas ruas e bater às portas. Numas mais escorraçada do que os cães, noutras, piedosas, a dizerem-lhe que entrasse pelas traseiras. Comeria na cozinha com os criados. Madalena de Castro Campos
[poema de Natal] Corto os pulsos de dentro para fora, sangro para dentro, lâminas de ruído afiadas em ruas iluminadas, centros comerciais, baías com árvores nunca vistas, flutuantes, papel, x-acto, fita cola, os pulsos cortados pelo lixo a arder na noite de consoada, infindo lixo a trazer felicidade, ilhas de lixo, em alto mar, os pulsos a sangrar para dentro famílias inteiras, eu calado a embrulhar-me no lixo para me dar de presente a quem me queira esbanjar. Henrique Manuel Bento Fialho
Elegia Pura Aqui não se passa nada, salvo o tempo, irrepetível música que ressoa, extinta já, num coração oco, abandonado, que alguém toma um momento, escuta e arremessa. Ángel González
Mudança Havia meses que não escrevia nem um único poema. Vivia com humildade, lendo os jornais, pensando no enigma do poder e nas causas da obediência. Olhava para os pores-do-sol (escarlates, cheios de inquietação), escutava o emudecimento das vozes dos pássaros e o silêncio da noite. Via os girassóis a pendurarem as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído passeasse por entre os jardins. No parapeito recolhia-se a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos se escondiam nas curvaturas dos muros. Dava longos passeios, sedento duma coisa só: dum relâmpago, duma mudança, de ti.
Esta é uma tarde completa: mil cacos de solidão. Eu conto eu comparo eu formo eu junto. Estas são as minhas mãos nuas numa mesa nua e triste. Tento fixar este instante, este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente. Tenho os olhos bem abertos. Sinto o áspero e louco toque da solidão. Um sol branco, solitário e enlouquecido está suspenso no céu branco. Vasant Abaji Dahake
É fácil de encontrar o paraíso: mesmo em novembro, quando a luz é breve e o sol adormece nos telhados, há um jardim onde os meus passos voam e cada sonho volta a ser igual ao secreto sentido que estremece entre as asas das aves, tão velozes como o vento que leva as nossas vidas. Fernando Pinto do Amaral
Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsenor E há palavras noturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmo só amor só solidão desfeita Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Pelos passos na areia molhada ao fim do dia poder-se-ia pensar que estou aqui, presente, mas parti por entre brisas fugidias e estou junto às asas do anjo no azul assustador do mar, do céu e das sombras; e o peso triste da carne parece-se com o espelho quebrado dos gestos e das horas, a imagem da presença dos corpos, uma mão, uma pálpebra, o desenho da pele e a voz escutada do tempo; o ar do dia dilui-me com frequência no fumo dos limites e entre duas vagas algodoadas, se parece que sou real, vereis, entrelaçar-se na tristeza o olho do desejo e o da morte, e eu estou algures entre dois azuis gémeos que vêm apagar a noite. Seja como for o leve vento de neve voltará de certeza êxito estranho do avesso dos dias; um anjo pousou a mão na mesa, à beira-mar, e a cortina dança entre o azul e o branco, encantamento do ar, e seja como for as mãos nuas das horas alisadas não dizem quase nada, levadas pelo anjo triste de cabelos de ouro, e sopro de pássaros; pousada, a mão parece-se com a sombra do mar porque ainda aí vivem homens, asas cortadas, no côncavo da palma do deus grego, a gota de orvalho que o caminho cego dos dias nos deixou para estancar a sede. Joan-Ives Casanova
As flores que devoram mel ficam negras em frente dos espelhos. Os animais que devoram estrelas em frente dos espelhos ficam brancos por detrás dos pêlos ou das plumas da idade. As pedras por onde circula a água ficam vivas de tanto cantar e, quando se voltam, atingem a sua maior velocidade interior. Se vêm às portas ver quem bate, os lençóis cobrem-se de respiradoras — quando regressam ao sono, deixam as mãos abertas. Se é uma estátua que bate, corre-lhe o sangue pela boca, e sobre os ombros torcem-se os cabelos, e as asas tremem em frente da porta. Se é um retrato, sorri sufocado pela noite adiante. Os espelhos são negros como os jacintos da loucura. Os crimes que olham para o espelho têm uma vibração silenciosa. Se é uma criança, diz: eu cá sou cor-de-laranja. Porém às vezes é bom ser branco, é bom estar deitado. O mel faz bem às pedras, atrai os olhos dos anjos. Quem aplaina tábuas acumula uma obscura sabedoria. Olha para os espelhos, tens um talento assimétrico de assassino. Vê-se nos teus ramos frutos negros contra a paisagem móvel. Se fosses um peixe, a porta estaria nas águas mais íntimas, frias, límpidas e caladas. E não batias — cantavas a tua síncope terrível. Nada se veria na vertente do espelho. Serias como uma máquina cor de cal respirando. Por isso te ofereço este ramo de lâminas e um fato de perfil — e andas nos labirintos. Por isso te sento numa cadeira de ar. Por isso somos os dois um quadrúpede de seda de uma beleza truculenta. Temos toda a vigília para encher de silêncios. Pensamos os dois o mesmo corpo inaugurado. As flores que devoram mel tornam negros os espelhos. As colinas vão olhando, e tremem na nossa carne as estampas de ouro extenuante. Por isso, por isso, por isso — somos assim obscuros. Herberto Helder
Sabes de mais que todos te preferem, Que mesmo aqueles que te deixam Nos trigos te reencontram, Na erva te procuram, Na pedra te escutam, Sem que jamais consigam agarrar-te. Guillevic
O Viajante Ali de onde venho ninguém me retinha. Sei que ninguém me espera aí para onde vou. Pela janela desfilam imóveis as paisagens. Seria maravilhoso não chegar a sítio nenhum. Permanecer assim: viajando de um lugar que já não existe para outro que nunca existirá. Juan Bonilla
A outra Penélope Por entre as oliveiras vem a Penélope com os cabelos apanhados à trouxe mouxe e uma saia comprada no mercado azul marinho com florinhas brancas. Explica-nos que não foi por dedicação à ideia "Ulisses" que deixou os pretendentes durante anos a esperar na antecâmara dos misteriosos hábitos do seu corpo. Ali no palácio da ilha com os horizontes fictícios de um doce amor e o pássaro à janela a captar apenas isto, o infinito, ela pintou com as cores da natureza o retrato de Eros. Sentado, de perna traçada, segurando uma chávena de café matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente, a sair quente dos edredões do sono. A sombra dele na parede marca deixada por um móvel há pouco retirado sangue de antigo assassínio aparição solitária do Karanguiózi na tela, e por trás dele sempre a dor. Inseparáveis o amor e a dor como o balde e o menino na praia o ah! e um cristal que se escapa das mãos a mosca verde e o animal morto a terra e a pá o corpo nu e o lençol de Julho.
E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo a bateria da renúncia o doce canto de um dia sereno sem bruscas mudanças de tempo e tom os complexos acordes de uma infinda gratidão por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz, acena que não, não, não a outro amor não mais palavras e sussurros abraços e dentadinhas vozinhas na escuridão cheiros de corpo que arde à luz. A dor era o pretendente mais excelente e fechou-lhe a porta.
O tempo passou, transformou tudo em gelo. Sob o gelo, o futuro bulia. Se caísses lá dentro, morrias.
Era um tempo de espera, de acção suspensa.
Eu vivia no presente, que era a parte do futuro que podíamos ver. O passado pairava sobre a minha cabeça, como o sol e a lua, visível mas inalcançável.
Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.
O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.
O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.
Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.
Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes
não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.
Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.
O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes
não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo
perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.
Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.
Louise Glück
paisagem tradução de rui pires cabral telhados de vidro nr. 12 maio 2009 averno 2009