Desceu a escada. Na entrada parou em frente de um grande espelho de moldura doirada, pendurado por cima de um tremó. Estava ainda mais pálida agora. Abriu a carteira e, rapidamente, pôs um pouco mais de rouge nos dois lados da cara.
Então, no fundo do espelho, atrás da sua cara, viu, descendo a escada, a terceira rapariga. Era loira, não alta mas esguia e tinha um ar aéreo. O vestido chiffon cor-de-rosa pálido dançava em redor de seus passos.
Lúcia fingiu não a ver mas a rapariga avançou, parou ao seu lado em frente do espelho, sorriu e disse:
- Não se veja nesse espelho. Faz muito má cara.
Lúcia perplexa murmurou:
- Pois é, talvez...
- A sua pele é linda e branca - atalhou a rapariga, e, ali, parece cinzenta. É melhor não olhar para lá.
Pairou um silêncio. Alguém que passava chamou a rapariga. Ela, sem se mover, respondeu:
- Vou já.
Depois hesitou um instante, sorriu de novo e, olhando Lúcia, continuou:
- Sabe... é preciso não dar importância a este género de espelhos. São como as pessoas más, não dizem a verdade.
- Pois, pois é - concordou Lúcia tentando entrar no imprevisto tom da conversa.
- Sabe - e a rapariga tomou um ar ausente como se falasse sozinha - não sabemos ao certo o que querem os maus reflexos, os maus olhares, as más palavras. Talvez a perdição da nossa alma. E temos que manter a nossa alma livre.
- Pois é - concordou Lúcia espantada.
- É - rematou a rapariga.
Depois, voltou a sorrir, sacudiu os cabelos e disse:
- Tenho de ir, até já.
E afastou-se.
in
Histórias da Terra e do Mar - História da Gata Borralheira, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Andre Kertesz - Distortion