sábado, 5 de junho de 2010
Retrato da Morte
Diane Arbus, Mrs. T. Charlton Henry
A UMA DAMA QUE DESMAIOU
DE VER UMA CAVEIRA
Mote:
Já fui flor, já fui bonina,
Agora estou desta sorte,
Fui o retrato da vida
Agora sou o da morte.
Glosa:
Se desmaias de me ver,
Eu também de ver-te a ti,
Pois qual tu te ves me vi,
E qual me ves has-de ser;
Esta caveira has-de ter,
Se te imaginas divina,
Que eu também quando menina
Fui um sol, fui uma aurora,
E se sou caveira agora,
Já fui flor, já fui bonina.
Se me viras Primavera,
Sendo uma inveja de flores,
Então mais te dera horrores,
Então alento te dera;
Secou esta verde hera
Um cruel sopro da morte,
Porque com seu braço forte
Tudo prosta, tudo humilha,
Que eu ontem fui maravilha,
Agora estou desta sorte.
Ver-me ontem era ventura,
Hoje ver-me horrores dou;
Hoje uma caveira sou,
Ontem flor da fermosura.
Foi tal a minha pintura,
Tão valente e tão subida,
Tão forte e tão presumida,
Tão corada, tão fermosa,
Que soberba e vangloriosa
Fui o retrato da vida.
Acabou-se este portento,
Já este sol se eclipsou,
Já esta flor se murchou,
Já se acabou este alento.
Como a vida foi um vento,
Acabou-se de tal sorte,
Que sendo com meu ornato
Ontem da vida retrato,
Agora sou o da morte.
(Poema de António Serrão de Castro, 1610-1685)