quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Guardarás numa caixinha
Guardarás numa caixinha
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.
Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.
Pedro Tamen
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.
Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.
Pedro Tamen
Roza Woltzogen |
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
Alexandre O'Neill
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
Alexandre O'Neill
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Há uma face que não sei
Há uma face que não sei,
que não sou.
E o que sou é a face de uma sombra.
Escrever para essa sombra sem face.
Sou uma sombra sem face
na sombra da rua.
Escrevo nesse intervalo,
nessa sombra onde ninguém suspira,
onde ninguém passa,
onde ninguém me vê passar,
onde não passo,
onde vou passar.
Há uma face
página onde a sombra se faz face
frente à sombra.
Escrever contra a face sem face.
Escrever acender na sombra
árvores
mover a sombra até ao céu da rua.
Caminhar na sombra desatar a sombra
alta e viva
contra a face aberta
contra a face viva.
Sou somos uma face uma sombra
uma sombra uma face.
Escrever é abrir na sombra uma sombra
e respirar na sombra
um corpo de sombra.
Ninguém nos vê nem nos verá jamais.
Respirar a sombra viva.
António Ramos Rosa
que não sou.
E o que sou é a face de uma sombra.
Escrever para essa sombra sem face.
Sou uma sombra sem face
na sombra da rua.
Escrevo nesse intervalo,
nessa sombra onde ninguém suspira,
onde ninguém passa,
onde ninguém me vê passar,
onde não passo,
onde vou passar.
Há uma face
página onde a sombra se faz face
frente à sombra.
Escrever contra a face sem face.
Escrever acender na sombra
árvores
mover a sombra até ao céu da rua.
Caminhar na sombra desatar a sombra
alta e viva
contra a face aberta
contra a face viva.
Sou somos uma face uma sombra
uma sombra uma face.
Escrever é abrir na sombra uma sombra
e respirar na sombra
um corpo de sombra.
Ninguém nos vê nem nos verá jamais.
Respirar a sombra viva.
António Ramos Rosa
The face of another, Tanin No Kao, 1966 |
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Waiting
Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.
António Lobo Antunes
Brassai, Paris, anos 30 |
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Destino
Matamos o que amamos. O mais
nunca esteve vivo – nunca.
Nem um só, assim perto. A nenhum outro fere
um esquecimento, uma ausência, às vezes menos.
Matamos o que amamos. Que cesse de imediato esta asfixia
de respirar por pulmão alheio.
O ar é lá bastante
para os dois! Não basta a terra
para os corpos juntos,
parca porra parca a ração da esperança,
tão parca como a dor de partilhar.
O homem é animal de solidões,
cervo com uma flecha no flanco
que foge e se dessangra.
Ah, mas o ódio, a sua ferida insone
de pupilas em vidro; a sua postura,
em torno, repouso e ameaça.
O cervo vai a beber e na água aparece
o reflexo de um tigre:
o cervo bebe a água e a imagem. E torna-se
- antes que o devorem (cúmplice, fascinado) –
igual ao seu inimigo.
Só damos vida ao que odiamos.
Rosario Castellanos (1925-1974)
tradução de António Cabrita
nunca esteve vivo – nunca.
Nem um só, assim perto. A nenhum outro fere
um esquecimento, uma ausência, às vezes menos.
Matamos o que amamos. Que cesse de imediato esta asfixia
de respirar por pulmão alheio.
O ar é lá bastante
para os dois! Não basta a terra
para os corpos juntos,
parca porra parca a ração da esperança,
tão parca como a dor de partilhar.
O homem é animal de solidões,
cervo com uma flecha no flanco
que foge e se dessangra.
Ah, mas o ódio, a sua ferida insone
de pupilas em vidro; a sua postura,
em torno, repouso e ameaça.
O cervo vai a beber e na água aparece
o reflexo de um tigre:
o cervo bebe a água e a imagem. E torna-se
- antes que o devorem (cúmplice, fascinado) –
igual ao seu inimigo.
Só damos vida ao que odiamos.
Rosario Castellanos (1925-1974)
tradução de António Cabrita
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
eu durmo comigo
eu durmo comigo
deitada de bruços eu durmo comigo
virada para a direita eu durmo comigo
eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que eu não durma comigo
como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo
eu durmo comigo debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário
eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado.
Angélica Freitas in Um Útero é do Tamanho de um Punho
deitada de bruços eu durmo comigo
virada para a direita eu durmo comigo
eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que eu não durma comigo
como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo
eu durmo comigo debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário
eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado.
Angélica Freitas in Um Útero é do Tamanho de um Punho
Andrew Wyeth |
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
The Awakening Conscience
Meryl Streep em A Amante do Tenente Francês, de Karel Reisz, 1981 |
Talvez além do que tu vês
não esteja nada
nem a alada criatura com que sonhas
nem sequer a sombra da sombra de uma sombra
Talvez nisso que vês só haja espelho
de um desejo sem rosto e sem esperança
que toda a vida (às vezes) seja apenas
esse deserto crescendo à tua volta
Aprende a não amar o amor
a nada querer
não desejar o desejo
nada ter.
Bernardo Pinto de Almeida (n. 1954)
The Awakening Conscience, William Holman Hunt, 1953 |
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Táxis, amigos e guarda-chuvas
Acabo de o jogar fora,
meia hora sob a tormenta
- à espera de um maldito táxi -
deu cabo dele.
Mas como se comportou.
Essa a diferença:
os táxis são como certos amigos,
quando precisas deles nunca estão.
Os guarda-chuvas, em troca, morrem por ti.
Karmelo C. Iribarren
(trad. de Albino M.)
meia hora sob a tormenta
- à espera de um maldito táxi -
deu cabo dele.
Mas como se comportou.
Essa a diferença:
os táxis são como certos amigos,
quando precisas deles nunca estão.
Os guarda-chuvas, em troca, morrem por ti.
Karmelo C. Iribarren
(trad. de Albino M.)
Christopher Thompson Grimsby, 1969 |
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
sábado, 2 de fevereiro de 2013
Dizes que me amas...
Dizes que me amas de uma tal forma,
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.
Amalia Bautista (n.1962)
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.
Amalia Bautista (n.1962)
Buster Keaton em The Scarecrow, 1920 |
Subscrever:
Mensagens (Atom)