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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

sábado, 23 de outubro de 2010

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei logo de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calado e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E começo a morrer muito antes de ter vivido.

Deito aqui onde jazo, só uma brisa que passa.
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

Fernando Pessoa


Salvador Dali, Hércules levantando a pele do mar pede a Vénus para esperar um instante antes de acordar o amor

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Lição de Inglês


"English lesson #2" de Jean Zeboulon, excerto de "Façade" de William Walton e Edith Sitwell, dito por Jeremy Irons

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Jus a lo Mar e lo Rio


Teresa Salgueiro "Jus a lo Mar e lo Rio" MATRIZ com Lusitânia Ensemble

Jus'a lo mar é o río;
eu namorada irei
u el-Rei arma navío.
Amores, convosco m'irei.

Jus'a lo mar é o alto;
eu namorada irei
u el-Rei arma o barco.
Amores, convosco m'irei.

U el-Rei arma navío
eu namorada irei
pera levar a virgo.
Amores, convosco m'irei.

U el-Rei arma o barco
eu namorada irei
pera levar a d'algo.
Amores, convusco m'irei.

Cantiga de João Zorro (séc. XIII)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Não sei, ama, onde era

Não sei, ama, onde era.
Nunca o saberei...
Sei que era Primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)

Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era tudo meu?
(Filha, quem o adivinha?)

E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)

Qualquer dia viria
Qualquer coisa fazer
Toda aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)

Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...

Fernando Pessoa


O Espírito da Colmeia, de Victor Erice, 1973

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Aniversário









Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles



The Walkmen - I Lost You

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Encontro

Saudade, de António Carneiro

Visito esse lugar
Procuro-te nesse recanto habitual.
Sei que não estarás lá,
mas finjo ignorá-lo,
procuro pensar que saíste,
que saíste há pouco,
numa ausência breve,
como se tivesses saído
para logo regressares.
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
Sei que não virás,
conjecturo até, por vezes,
teus distantes diálogos numa praça gris
que imagino em tarde de invernia.
Então disfarço, ponho-me
a inventar, por exemplo,
uma longilínea praia deserta,
uma fina, fria, nebulosa
praia
muito silenciosa e deserta.
Pensando nela fito de novo
este lugar e digo para mim
que apenas partiste
por um breve instante.
E sigo. E de novo protelo
este encontro impossível.

Rui Knopfli, Obra Poética

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amor

Amor, de António Carneiro

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 3 de outubro de 2010

Esperança

Esperança, de António Carneiro


Saudade minha,
quando vos veria?

Este tempo vão,
esta vida escassa,
para todos passa,
só para mim não.
Os dias se vão
sem ver este dia,
quando vos veria?

Vede esta mudança
se está bem perdida,
em tão curta vida
tão longa esperança!
Se este bem se alcança,
tudo sofreria,
quando vos veria.

Saudosa dor,
eu bem vos entendo;
mas não me defendo,
porque ofendo Amor.
Se fôsseis maior,
em maior valia
vos estimaria.

Minha saudade,
caro penhor meu,
a quem direi eu
tamanha verdade?
Na minha vontade,
de noite e de dia
sempre vos teria.

Luís de Camões, Rimas

sábado, 2 de outubro de 2010

Sparkling


We Were Sparkling - My Brightest Diamond
Vídeo de Federico Forlani

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

História de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny de Vasconcelos, Manual de Prestidigitação (1956)
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