O nojo, o nojo visceral, Senhor.
Dai-nos o nojo, Senhor, o sagrado, o supremo nojo
de que se irá decidir a nossa salvação e a salvação dos que,
enojados como nós,
antepõem o vómito a esta mansidão de sombras paradas pelo
chão.
Dai-nos o nojo, Senhor, o nojo que a marca da repugnância
favorece e docilmente nos vem lamber as feridas.
O nojo, Senhor, a agonia do nojo
para que possamos cuspir sem ressentimentos no rosto
de quem nos cospe no rosto.
Porque o rato pariu uma montanha, Senhor, e como cães
assustados
esperamos o impacto do fogo sobre o fogo.
Porque mantemos os sentidos despertos, Senhor, e esperamos
o resgate, o refúgio e o êxtase.
Porque caminhamos nas trevas com extrema paixão e uma ânsia
poderosa, Senhor,
dai-nos a náusea,
a abundância da náusea sobre o nosso rancor.
Dai-nos o vómito, Senhor, o vómito
carregado de fel da nossa vida violenta,
do nosso amor violento,
da nossa esperança violenta e violentada
pelo preço de um pão e o suor agónico da nossa face.
Recorremos a Ti, Senhor, neste páramo de ódios,
para que nos dês o alívio do vómito letal do nosso desespero,
esta amargura carregada de amargura
que nos lançaram sobre os ombros e tem o peso do mundo.
Com as lágrimas nos olhos, Senhor, e a cabeça coroada
de espinhos, pedimos-Te a libertação do nojo que ocultamos nos
nossos corações,
o nojo intemporal
dos que nos antecederam e que virão depois de nós, o nojo
imensurável que geramos no nosso ventre e ao nosso ventre
voltará sob a forma de cal
purificadora.
Dai-nos o nojo, Senhor, essa flor infecta, sanguinolenta e suja
que há-de desabrochar das nossas dores
em Tua glória
e em nome do asco a que fomos submetidos.
Amadeu Baptista in "Antecedentes Criminais - Antologia Pessoal 1982-2007", Edições Quasi, 2007
Repulsa, de Roman Polanski, 1965 |