Há muitos anos um velho poeta escreveu a tinta numa folha de papel um poema. Depois, como era costume nesse tempo, lançou um pouco de areia sobre a folha para que a tinta com que escrevera secasse mais depressa. Esperou alguns momentos e recolheu de novo a areia numa pequena caixa destinada a esse efeito. Reparou, então, que na folha de papel o poema tinha desaparecido. Não se preocupou muito. Sabia que as palavras que escrevera tinham ficado naqueles grãos de areia.
Havia dias em que se aproximava daquela caixa e gostava de a contemplar porque sabia que o poema se encontrava dentro dela. Por vezes retirava alguns grãos. A sua atenção acabava por se fixar num deles como se estivesse ali a ler ou a decifrar apenas uma letra, uma palavra, o poema inteiro, o seu próprio espírito.
Foi assim que a morte o surpreendeu. Talvez a história terminasse aqui, mas não, porque nesta como em todas as outras histórias o tempo pode decorrer tanto do passado para o presente como deste para aquele. Por isso é-nos dado concluir ou imaginar que uma criança - aquela que há-de ser, mais tarde, o velho poeta - entra no mesmo quarto onde estava a caixa com o punhado de areia a que nos referimos. Repara nela com curiosidade. Aproxima-se devagar e abre-a, vê aquela areia que, para si, não tem nenhum significado. Ou, melhor, começa a tê-lo porque pensa que a deve restituir a uma praia.
Resolve fazê-lo, um dia. Ao chegar junto do mar, deixa cair aí os grãos de areia e diz: "É apenas isto". Ninguém se encontrava naquela praia. Por essa razão, só o mar podia ouvir estas palavras. Quais? As do poema que estava naquela mão cheia de areia ou as da criança? Ambas, certamente, porque nunca foram diferentes umas das outras.
Fernando Guimarães, 1994