“Não sei quem veio de fora, nem por que motivo as coisas deixaram de ser nossas - mas voga por aí uma presença estranha, o rosto invisível e absoluto de um qualquer ocupante estrangeiro. Ele mudou o nome das coisas e a precisão doméstica dos nossos sítios. Tomou conta dos lugares públicos. Aquartelou-se nas casas, nas tribunas e nos templos. E agora impõe-nos uma ordem social e espiritual que nunca foi nossa: ou seja, uma religião sem princípios, a confraria da imoralidade”.
E continuou, traçando um sarcástico retrato do país: “São populares e risonhos os amanuenses e os ditadores do país onde já não acontece nada. Basta-nos, para que isto ainda exista, haver lá no alto um cardeal primeiro-ministro, alguns bispos e curas nos ministérios e uns quantos noviços por secretários de Estado - mantendo-se assim a nossa ilusão acerca da existência do país. Bastam-lhe os lugares sentados no Parlamento e um talentoso orador a gritar ao povo; bastam-lhe dois escritores e meio para falar por todos; doze actores de teatro e cinema, dez polícias e um general, um maestro de batuta erguida ante as cinquenta e duas cabeças de uma orquestra, 0,1 arrependidos políticos confessos, 2,06 professores e sindicalistas, três médicos e meio engenheiro, um cantor de fados e treze guarda-costas, um agricultor e oito industriais, um futebolista e três quartos de outro, um careca idoso e outro careca que ainda exibe o cartão jovem ou o título de novo empreendedor - e fica completo o comício Vão-se os homens desta terra que em tudo deixou de valer a pena desde que sua alma se fez pequena. Vão-se os anéis e os dedos, os pomares e as vinhas, as searas de trigo e os pinhos, os pássaros e o milho - e calam-se pouco a pouco as vozes e os sinos”.
João de Melo
O espírito louco dos escritores