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sábado, 30 de março de 2013

Mudar de Vida


É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─  para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade.


José Gomes Ferreira


sexta-feira, 22 de março de 2013

quase


uma mulher quase nova
com um vestido quase branco
numa tarde quase clara
com os olhos quase secos

vem e quase estende os dedos
ao sonho quase possível
quase fresca se liberta
do desespero quase morto

quase harmónica corrida
enche o espaço quase alegre
os cabelos quase soltos
transparente quase solta

o riso quase bastante
quase músculo florido
deste instante quase novo
quase vivo quase agora.


Mário Dionísio


domingo, 17 de março de 2013

Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte

sexta-feira, 15 de março de 2013

3 de Espadas



Desdenho os teus passos
Retórica triste:
Sorrio na alma
De ti nada existe

Eu morro e remorro
Na vida que passa
Eu ouço teus passos
Compasso infernal

Nasci para a vida
De morte vivi
mas tudo se acaba
Silêncio. Morri.

Ana Cristina Cesar
1967



Massive Attack - Live With Me

quarta-feira, 6 de março de 2013

Omnibus

Alguma coisa pensa em
si própria em mim.
Em algum tempo ou em algum lugar
alguma coisa é real, pensando.

Às vezes quase lhe toco
quando não me perturbam os meus pensamentos.
E talvez quando faço
sem dar por isso os gestos de todos os dias
talvez então esteja muito perto sem o saber.

E alguém me leve pela mão por uma realidade
feita da minha vida e de coisas reais
a que pertencemos eu e o que pensa.

Manuel António Pina


sábado, 2 de março de 2013

Poema do desamor


Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato

Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato

Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato

Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

                                                       
Alexandre O'Neill


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