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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Estou certo de que não existes

Estou certo de que não existes
e no entanto oiço-te todas as noites

invento-te às vezes com minha vaidade
ou minha desolação ou minha modorra

do infinito mar vem o teu assombro
escuto-o como um salmo e no entanto

tão convencido estou de que não existes
que te aguardo no meu sonho de logo


Mario Benedetti
(trad.Virgínia Jorge)

 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A verdade era bela

A verdade era bela,
como vinha nos livros.
À beirinha das águas
a verdade era bela.

Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela,

Quase todos se riram.
Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.

A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.

Sebastião da Gama

Ferdinand Hodler, A Verdade II

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Desprezada

"Desprezada das relações humanas (eram tão difíceis as pessoas), fora muitas vezes ao jardim receber das suas flores uma paz que os homens e as mulheres não lhe davam nunca."

Virginia Woolf, Mrs. Dalloway


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Carta do Tempo Triste para a Maria Virgínia

Rui Palha


Eu bem queria não te dizer apenas
que, na cidade, são sete horas precisas
e os eléctricos conduzem gente
circunspecta e cansada.

Eu gostaria de dizer-te
que coisas sublimes tinham acontecido
ou, pelo menos, falar-te
de pequenos mas raros sucessos.

Se tudo fosse tão simples e sereno
como a descuidada juventude dos pássaros,
a todos os momentos eu poderia
enviar palavras naturais e frescas
ao teu coração aberto e vasto.

Difícil, então, só seria o silêncio
e dizendo teu nome estabeleceria
o rompimento absoluto com as estreitas,
agrestes e de sempre palavras sem futuro.

Poderia depois dizer-te coisas brandas
na universal linguagem 
que tornasse concordes pássaros e estrelas
com a circulação ritmada do teu sangue.

Poderia falar-te de coisas que não estas,
de outra gente, não esta que ora segue
sonolenta e resignada pelas ruas.
Esta gente que não tem um sonho a embalar,
mas filhos, muitos filhos,
esta gente sem gritos nem revoltas,
mas sorrisos humildes e postiços,
esta pobre gente para quem são sete horas
irremediavelmente.

Ah! Maria Virgínia, pudesse eu
dizer-te francamente: «Não há perigo,
nada importam as horas,
vamos calmos e felizes pela cidade,
e o tempo não marca porque tudo é perfeito.»

Sim, eu queria dizer-te só palavras
harmónicas e novas.
Sim, eu queria que o tempo fosse
o mesmo dos insectos e dos peixes,
dos seres simples mas donos dos seus dias.
Exactamente o propício tempo
para te enviar as mais belas notícias
que tu guardarias juntamente
com a mais pura alegria.

Ah! pudesse eu dizer-te
o que dirão os homens
 livres para sempre destas amargas horas.


António Rebordão Navarro

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

I am not I


I am not I.
I am this one
walking beside me whom I do not see,
whom at times I manage to visit,
and whom at other times I forget;
the one who remains silent while I talk,
the one who forgives, sweet, when I hate,
the one who takes a walk when I am indoors,
the one who will remain standing when I die.

Juan Ramon Jimenez


domingo, 14 de outubro de 2012

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

Os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

Por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
No entanto, a eternidade existe.

Os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
Os instantes do teu sorriso eram eternos.
Os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

Foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto

domingo, 7 de outubro de 2012

O que é viver?

Heinrich Kuhn c. 1910 - Hill Crest


O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas
que o pó desenhou.

O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.

O que é o vento?
alma que não quer habitar o corpo.

O que é um espelho?
uma segunda face
um terceiro olho.

O que é a praia?
colchão para ondas cansadas.

O que é a onda?
imagens em movimento
na tela do mar.

O que é o arco-íris?
corpo de nuvem e
corpo de sol
abraçados arqueados
sobre o corpo da terra.

O que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.

O que é o sonho?
elevar o real ao nível da fantasia.

O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.

O que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte.

O que é a angústia?
vincos na seda dos nervos.

O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos sem se saber.

O que é o não sentido?
doença que mais se propaga.

O que é o fracasso?
musgo boiando no lago da vida.

O que é a nudez?
o começo do corpo.

O que é um beijo?
colheita visível do invisível.

O que é um abraço?
o terceiro dos dois.

O que é uma cama?
noite dentro da noite.

O que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra.

O que é a escuridão?
o ventre de uma mulher
grávida do sol.

O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.

O que é a metáfora?
asa aliviando no peito das palavras.

O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.

O que é a surpresa?
pássaro que escapou
da gaiola da realidade.

O que é o umbigo?
meio caminho
entre
dois paraísos.

O que é a melancolia?
anoitecer
no espaço do corpo.

O que é o anoitecer?
discurso de despedida.

O que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim.

O que é viver?
caminhar sem pausa
rumo ao anoitecer.


trechos do poema "Guia para viajar pelas florestas do sentido" de Adonis


 

sábado, 6 de outubro de 2012

Deixai os doidos governar...

Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos nos colossais
Cristais
Hílares
Que a sua grandeza lhes sonhou!


Reinaldo Ferreira (1922-1959)


 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fuga

Numa nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.

Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.

Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.

Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.


Luís Amaro

Istvan Sandorfi



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Partiu-se o Sol

Partiu-se o sol
entre nuvens de cobre.
Dos montes azuis chega um ar sonoro.
No prado do céu,
entre flores de estrelas,
a lua vai em crescente
como um garfo de ouro.

Pelo campo (que espera os tropéis de almas),
vou carregado de pena,
pelo caminho só;
porém o meu coração
um raro sonho canta
de uma paixão oculta
a distância sem fundo.

Ecos de mãos brancas
sobre a minha fronte fria,
paixão que se madurou
com pranto de meus olhos!

Federico Garcia Lorca

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