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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Não há devassidão maior...

Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
A ousadia de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos factos nus,
o tactear indecente de temas delicados,
a desova das ideias – é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
juntam-se aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros (…)

Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória (…)

É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece (…)”


wislawa szymborska, opinião sobre pornografia


Alphaville, de Jean-Luc Godard, 1965

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A Gente Vai Continuar

Terry St. John

Tira a mão do queixo não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas pra dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem à batota
Chega a onde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota

Enquanto houver estrada pra andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada pra andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar

Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
A liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo

domingo, 23 de setembro de 2012

Sós a vida inteira

"Há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. Eu, por exemplo. (...) Frequentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento."

"Mas gosto, gosto das pessoas. Não sei me comunicar com elas, mas gosto de vê-las, de estar a seu lado, saber suas tristezas, suas esperas, suas vidas."

Caio Fernando Abreu, in Limite Branco, 1967



Here They Used to Build Ships

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Renascer

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso. A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão."

"Vai passar,tu sabes que vai passar.Talvez não amanhã,mas dentro de uma semana, um mês ou dois,quem sabe?O verão está aí, haverá sol quase todos os dias,e sempre resta essa coisa chamada¨impulso vital. Pois esse impulso às vezes cruel,porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e,de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como "estou contente outra vez"..."

Caio Fernando Abreu, in Ovelha Negra




segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Não sou…

Não sou prisioneira do tempo
Nem ancoro meus sonhos
No solo árido da minha vida medíocre.
Deixo meus olhos flutuarem
Entre céus e infernos
Que a poesia me leva.
Procuro a jóia rara
De um sorriso único
Repleto de angústia e surpresa.
Navego obscura entre
meus medos e meus desejos
sem ter certeza de nada.
Que venha a vida, então,
E penetre em mim
Como um punhal
Rasgando minhas dúvidas
Cortando as amarras
Que me prendem ao possível.
Pertenço a quem me possuir,
Sou do mundo.
Sou minha vida.
Sou o espelho do que jamais serei.

Cláudia Marczak

Sergio Larrain, Villalba, Sicília 1959

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