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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

os nossos tristes assuntos

tal como pedes eu trato
dos nossos tristes assuntos
já rasguei o teu retrato
e outro em que estávamos juntos.

e o anel que tu me deste
fui deitá-lo fora ao mar,
o vento soprava agreste
e não havia luar.

há-de ficar-te a lembrança
da nossa vida passada,
eu, perdida a esperança,
fico sem nada, sem nada.

fica tu com as mentiras
que te dizem estou bem
e outras mais que tu prefiras,
que as não digo a mais ninguém.

fico eu com as verdades
tão duras, sem exagero,
e angústias e ansiedades
e agonia e desespero,

fico eu com o vazio
da negra noite sem fim,
nem sei quem sou, tenho frio,
estou comigo e sem mim

não me conheço ao espelho:
serei eu? não serei eu?
já deixou de ser vermelho
um coração que bateu.

e assim eu me despedaço,
sem salvação nem socorro:
se não sou eu, me desgraço,
se sou eu, sinto que morro.


Vasco Graça Moura, in Poesia 2001-2005


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A jaula e as feras

Vivem centos de doidos nesse hospício
(Quem no diria, olhando cá de fora...?!)
E o portão dança já no velho quício,
Dança, e faz entrar mais a toda a hora...

Trazem todos um sonho, um crime, um vício,
E foram reis lá muito longe, outrora...
E em seus rostos de espanto ou de flagício
Não sei que ausência atroz a toda a hora...

Faz medo e angústia olhá-los bem nos olhos;
E, lá por trás de grades e ferrolhos,
Estoiram de ansiedade desmedida.

- Meu corpo, ó meu hospício de alienados!
Abre-te aos meus desejos enjaulados,
Deixa-os despedaçar a minha vida!

José Régio, Poemas de Deus e do Diabo


C.C. Baxter: The mirror… it’s broken. 
Miss Kubelik: Yes, I know. I like it that way. Makes me look the way I feel.

The Apartment (1960), de Billy Wilder

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Olho-te e não me vês...

Olho-te e não me vês. A primavera vigia
a floração das malvas e o girassol retribui
os favores da luz. Eu sento-me onde acho

que vai estar a tua sombra. E, como a dor
que persegue a ferida, vejo-te quando passas,
mas vejo-te melhor quando não passas. Tu

não me vês; caminhas na geometria vã de
uma linha sem pontos; às vezes parece que
alguma coisa te detém e viras-te - talvez
então me chames dentro de ti, talvez até
me olhes. Mas não me vês.


Maria do Rosário Pedreira

Édouard Boubat 1950

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

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