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quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Beleza do Inacabado

Obras de Santa Engrácia

No início deste ano lectivo, arrancaram as obras de remodelação da escola onde trabalho. Tudo no âmbito do grandioso projecto de modernização das escolas secundárias deste país,  concebido pelo mui ilustre e magnânimo governo de Sócrates.
Sete meses depois, e após muita derrocada, muito entulho empilhado, e aulas já a decorrerem em contentores - perdão, quero dizer, monoblocos! - a direcção executiva comunicou que a empresa construtora abriu falência e as obras estão suspensas.
Muitos "ohs", indignados uns, consternados outros, irónicos e divertidos outros ainda, se ouviram na sala de professores. A mim só me deu vontade de rir...
Tão grotescamente bela que está a minha escola!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Penitência

Grete Stern


Ignoto Deo

(D.D.D.) *

Creio em ti, Deus: a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que inspirado se afasta,
Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prostro e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só 'spera.

Almeida Garrett

* Dat, donat, dedicat (dá, oferece, dedica)

 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Lembra-me um sonho lindo

George Lawrence Bulleid (1858 - 1933), Iris


Lembra-me um sonho lindo
quase acabado,
lembra-me um céu aberto
outro fechado

Estala-me a veia em sangue
estrangulada,
estoira num peito um grito,
à desfilada

Canta rouxinol canta
não me dês penas,
cresce girassol cresce
entre açucenas

Afoga-me o corpo todo
se te pertenço,
rasga-me o vento ardendo
em fumos de incenso

Lembra-me um sonho lindo
quase acabado,
lembra-me um céu aberto
outro fechado

Estala-me a veia em sangue
estrangulada,
estoira num peito um grito,
à desfilada

Ai como eu te quero,
ai de madrugada,
ai alma da terra,
ai linda, assim deitada

Ai como eu te amo,
ai tão sossegada,
ai beijo-te o corpo,
ai seara, tão desejada

Fausto - "Por Este Rio Acima", 1984

quarta-feira, 20 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

Janelas III

Edward Weston


Alfred Eisenstaedt


Jacques Henri Lartigue


Clarence H. White


Brassai, Grand Central Station, NY

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Desiderata

Go placidly amid the noise and haste, and remember what peace there may be in silence.

As far as possible, without surrender, be on good terms with all persons. Speak your truth quietly and clearly; and listen to others, even to the dull and the ignorant, they too have their story. Avoid loud and aggressive persons, they are vexations to the spirit.

If you compare yourself with others, you may become vain and bitter; for always there will be greater and lesser persons than yourself. Enjoy your achievements as well as your plans. Keep interested in your own career, however humble; it is a real possession in the changing fortunes of time.

Exercise caution in your business affairs, for the world is full of trickery. But let this not blind you to what virtue there is; many persons strive for high ideals, and everywhere life is full of heroism. Be yourself. Especially, do not feign affection. Neither be cynical about love, for in the face of all aridity and disenchantment it is perennial as the grass.

Take kindly to the counsel of the years, gracefully surrendering the things of youth. Nurture strength of spirit to shield you in sudden misfortune. But do not distress yourself with imaginings. Many fears are born of fatigue and loneliness.

Beyond a wholesome discipline, be gentle with yourself. You are a child of the universe, no less than the trees and the stars; you have a right to be here. And whether or not it is clear to you, no doubt the universe is unfolding as it should.

Therefore be at peace with God, whatever you conceive Him to be, and whatever your labors and aspirations, in the noisy confusion of life, keep peace in your soul.

With all its sham, drudgery and broken dreams, it is still a beautiful world.

Be cheerful. Strive to be happy.

Max Ehrmann

Giovanni Ambrogio de Predis, Girl with Cherries (1491)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

FMI

BALADA DO FILHO DA PUTA - 1

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

Alberto Pimenta




FMI de José Mário Branco (1 de 2)


BALADA DO FILHO DA PUTA – 2

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande
filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta.

Alberto Pimenta




FMI de José Mário Branco (parte 2 de 2)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Novas Oportunidades


Mário Viegas em Palavras Ditas: Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tonic

domingo, 3 de abril de 2011

quando um dia é como todos

"Com respeito à natureza do tédio encontram-se frequentemente conceitos erróneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do seu conteúdo "fazem passar" o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e o vazio estorvam e retardam o seu curso. Mas não é absolutamente verdade. O vazio e a monotonia alargam por vezes o instante ou a hora e tornam-nos "aborrecidos"; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, pelo contrário, capaz de abreviar uma hora ou até mesmo o dia, mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de tal maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e voam. Portanto, o que se chama de tédio é, na realidade, antes uma simulação mórbida da brevidade do tempo, provocada pela monotonia: grandes lapsos de tempo quando o seu curso é de uma ininterrupta monotonia chegam a reduzir-se a tal ponto, que assustam mortalmente o coração; quando um dia é como todos, todos são como um só; e numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos.

O hábito é uma sonolência, ou, pelo menos, um enfraquecimento do senso do tempo, e o facto dos anos de infância serem vividos vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa, esse facto também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio de manter a nossa vida, de refrescar a nossa sensação de tempo, de obter um rejuvenescimento, um reforço, um atraso da nossa experiência do tempo, e com isso, a revolução da nossa sensação da vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de férias: nisso reside o que há de salutar na variação e no episódio. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo - seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se "aclimata", começa a senti-los abreviarem-se: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de apegar-se à vida nota, com horror, como os dias começam a tornar-se leves e furtivos; e a última semana - de quatro, por exemplo - é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo faz-se sentir para além do interlúdio, e desempenha o seu papel ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois desta variação, afiguram-se-nos também novos, amplos e juvenis, mas somente uns poucos: porque a gente acostuma-se mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão, e quando o nosso senso do tempo está fatigado pela idade, ou nunca o possuímos desenvolvido em alto grau - o que é sinal de pouca força vital - volta a adormecer muito depressa, e ao cabo de vinte e quatro horas já é como se a pessoa jamais tivesse partido e a viagem não passasse de um sonho de uma noite."

Thomas Mann, in A Montanha Mágica

Edward Hopper, Automat, 1927
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