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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vai passar

"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloquentes como "sempre" ou "nunca".

Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituímos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar".

Esse nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cómodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência. Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência".

E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.

Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na lagartixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.

Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.

Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim: ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga, mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ..."

Caio Fernando Abreu, in Ovelhas Negras

Felice Casorati, Dreaming of Pomegranates, 1912

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Baile de Máscaras


Scherzo di Folia, de Pierre-Louis Pierson, 1865

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

(...)

Fernando Pessoa

Virginia Elisabetta Luisa Carlotta Antonietta Teresa Maria Oldoïni (1837 – 1899), mais conhecida como La Castiglione, foi uma condessa italiana que ganhou notoriedade como amante do Imperador Napoleão III.
Entre 1856 e 1895, a Condessa de Castiglione fez-se fotografar mais de 400 vezes pelo estúdio Mayer & Pierson, em Paris.


Entre as suas poses para a câmara contam-se uma freira, Medeia com uma faca, Beatriz, Judite a entrar na tenda de Holofernes, uma donzela afogada, Lady Macbeth sonâmbula, Ana Bolena, uma cortesã exibindo as suas pernas ou ainda um cadáver no caixão. Virginia fazia ficção fotográfica com a sua própria imagem e criava identidades alternativas, usando espelhos para fragmentar e multiplicar imagens.



A sua vaidade era tão ou ainda mais famosa que a beleza. Enviava álbuns dos seus retratos a amigos e admiradores. Não dirigia a palavra às mulheres e vivia completamente fascinada por si própria, segura de que os outros também assim viviam. Os seus cúmplices predilectos: os espelhos.


Jocelyn Pook - Masked Ball

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Noite


As Noites de Cabiria, de Federico Fellini, 1957

"Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
(...) Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
(...) Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
(...) Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
Mas a outra metade eu não sei..."

Oswaldo Montenegro

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011

vida-monólogo

"Existem pessoas tão habituadas a estar só consigo mesmas, que não se comparam absolutamente com outras, mas, com disposição alegre e serena, em boas conversas consigo e até mesmo sorrisos, continuam a tecer a sua vida-monólogo. Se as levamos a compararem-se com outras, tendem a uma cismadora subestimação de si mesmas: de modo que devem ser obrigadas a reaprender com os outros uma opinião boa e justa sobre si: e também dessa opinião aprendida quererão deduzir e rebaixar alguma coisa. Portanto, devemos conceder a certos indivíduos a sua solidão e não ser tolos a ponto de lastimá-los, como frequentemente sucede."

Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano

John Wiliam Waterhouse, Destiny

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Rostos

Horst P. Horst, Gene Tierney, 1940

Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda mais, pois cada um tem vários. Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples; não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os filhos. Mas também acontece que os seus cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um rosto.

Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez incrível, um após outro, e gastam-nos. Primeiro parece-lhes que chegariam para sempre, mas, mal fazem quarenta anos, o que têm já é o último. Tudo isto tem, evidentemente, o seu lado trágico. Não estão habituados a poupar rostos, o último fica gasto ao fim de oito dias, tem buracos, em muitos pontos é fino como papel, e então vai aparecendo gradualmente o que está por baixo, o não rosto, e é com ele que andam.

Rainer Maria Rilke, in As Anotações de Malte Laurids Brigge

Duas Vidas

Wladyslaw Theodor Benda, 1922

DACTILOGRAFIA, de Álvaro de Campos


Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Green Grass

Moodlifter, de Maggie Taylor, 2001

"Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre. Porque alguém disse e eu concordo que o tempo cura, que a mágoa passa, que a decepção não mata, e que a vida sempre, sempre continua."

Simone de Beauvoir


Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me

Come closer don't be shy
Stand beneath a rainy sky
The moon is over the rise
Think of me as a train goes by

Clear the thistles and brambles
Whistle 'Didn't He Ramble'
Now there's a bubble of me
And it's floating in thee

Stand in the shade of me
Things are now made of me
The weather vane will say...
It smells like rain today

God took the stars and he tossed 'em
Can't tell the birds from the blossoms
You'll never be free of me
He'll make a tree from me

Don't say good bye to me
Describe the sky to me
And if the sky falls, mark my words
We'll catch mocking birds

Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Insensatez


A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah! Porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah! Meu coração quem nunca amou
Não merece ser amado
Vai meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai meu coração
Pede perdão, perdão apaixonado
Vai porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

Composição: Tom Jobim e Vinícius de Moraes



La Notte, de Michelangelo Antonioni, 1961

Jogo de Paciência

A poem for swingers, a poem for the playgirls of the universe

I like women who haven’t lived with too many men.
I don’t expect virginity but I simply prefer women
who haven’t been rubbed raw by experience.
There is a quality about women who choose
men sparingly;
it appears in their walk
in their eyes
in their laughter and in their
gentle hearts.
Women who have had too many men
seem to choose the next one
out of revenge rather than with
feeling.
When you play the field selfishly everything
works against you:
one can’t insist on love or
demand affection.
you’re finally left with whatever
you have been willing to give
which often is:
nothing.
Some women are delicate things
some women are delicious and
wondrous.
If you want to piss on the sun
go ahead
but please leave them
alone.

Charles Bukowski

Meredith Frampton, A Game of Patience, 1937

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A dolorosa mutação do cisne negro



O artista é um ser trágico, que "morre" no palco para dar vida a outro ser e Darren Aronofsky, no seu Black Swan, leva esta ideia até às últimas consequências. Natalie Portman encarna uma frágil bailarina, Nina Sayers, qual boneca de porcelana prestes a quebrar-se. Tudo na sua vida, começando pela mãe castradora, concorre para a incessante procura da perfeição. E o preço a pagar pela perfeição é uma viagem em tons de pesadelo ao seu interior, num jogo alucinante de espelhos, dualidades e de confrontos com a sua sombra - o cisne negro?

O macabro e as metamorfoses, quase kafkianas, da bailarina assustam-nos e fascinam-nos, transmitindo-nos todo o sofrimento de uma mente em ruínas - um espelho quebrado. E é no palco que Nina realiza o sacrifício supremo, e a beleza e a perfeição são atingidas...

Há muito tempo que não via um filme assim...

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Cisne


Caroline Weeks - Wild Swans

Retrato de Mulher Triste

Mary Nolan (1905-1948)

















Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.


Cecília Meireles, in 'Poemas' (1942-1959)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Eléctrico

(...) Gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e confundo-me. Fico todo enrolado a correr de uma estrela cadente para outra até desistir. Assim é a noite, e é isso o que ela faz contigo. Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser a minha própria confusão (...)

On the Road, Jack Kerouac


Krzysztof Kieslowski, Tramwaj, 1966

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ausência

Carolyn Pyform, You also are Psyche, 2008

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Porque não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações sem fim.
Porque a ausência, essa ausência assimilada.
Ninguém rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade
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