Páginas

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

About the meaning of life #7

A poesia é a vida? pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
- e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo de um poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.

Alexandre O'Neill


Mad World - versão de Gary Jules

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

J'attendrai

O reflexo de teu rosto já é outro
no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão.
A numerosa nuvem que se desfez no poente
é nossa imagem.

Jorge Luís Borges

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal à beira-rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Anaíta

III

Pontualmente uma árvore de ouro
nasce onde o sémen do homem
e o curso de água feminino
se fundem e as sombras se somem.

Verdura dos olhos de Anaíta
por nossas carícias semeada
que passeios de tílias nas cidades
para a pureza do encontro guarda.

Anaíta que a raiz do homem
na terra da mulher prepara
e as extremidades do mundo
num ramo de amor ata.

Anaíta que as árvores conhecem
por seu nome próprio de mirtos
e como risos as aves voam
seu fresco bater de cílios.

Matrona que à cabeça traz
a abismada bilha nos espaços
pomo celeste que se destila
no alambique dos afagos.

Anca do mundo requebrada
estrela que guarda em seu lenço
os beijos com que sopramos
a nossa bolha de silêncio.

Ouvido que o crescer dos abetos
no bosque da cópula escuta.
Mulher! oh rito de Anaíta
mistério de ser virgem e puta.

Natália Correia in Mátria

Brassai

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Transparência do sonho

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos.

Al Berto















Jeremy Irons em Richard II, Royal Shakespeare Company, 1986

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Dreams That Money Can Buy

Dreams That Money Can Buy é um filme experimental de 1947, escrito, produzido e realizado pelo surrealista Hans Richter. Nomes como Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray, Alexander Calder, Darius Milhaud e Fernand Léger, contam-se entre os seus colaboradores e o filme ganhou o prémio de Melhor Contribuição Original para o Progresso da Cinematografia, no Festival de Veneza, em 1947.

Joe/Narciso é um homem vulgar que acabou de assinar um complicado contrato de aluguer. Enquanto pensa como vai conseguir pagar a renda, descobre que é capaz de ver tudo o que se passa na sua mente ao olhar-se directamente no espelho.



Decide aplicar o seu dom aos outros ("If you can look inside yourself, you can look inside anyone!"), e estabelece um negócio, vendendo sonhos à medida a uma variedade de clientes frustrados e neuróticos.

Cada uma das sete sequências de sonhos é criada por um artista avant-garde e/ou surrealista:

Desejo: Max Ernst
A Rapariga com o Coração Pré-fabricado: Fernand Léger
Ruth, Rosas e Revólveres: Man Ray
Discos: Marcel Duchamp
Ballet: Darius Milhaud
Circo: Alexander Calder
Narciso: Hans Richter


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Estátuas e Espelhos


La Double Vie de Veronique, de Kieslowski, 1991

domingo, 12 de dezembro de 2010

Lunática

A Lua, personificação do capricho, olhou pela janela enquanto dormias no teu berço, e disse consigo mesma:
"Gosto desta criança".

E desceu solenemente a sua escadaria de nuvens e passou sem ruídos através das vidraças. E depois envolveu-te com a ternura flexível duma mãe, depondo-te no rosto as suas cores. Daí as tuas pupilas ficarem verdes, e as tuas faces extaordinariamente pálidas. Foi ao contemplares essa visitante que os teus olhos tão bizarramente se dilataram; e ela estreitou-te o peito com tanto amor que tu ficaste para sempre com vontade de chorar.

Entretanto, na expansão da sua alegria, a Lua enchia todo o teu quarto com uma atmosfera fosforescente, como um veneno luminoso; e toda essa luz viva pensava e dizia: "Hás-de sofrer eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira. Amarás aquilo que eu amo e aquilo porque sou amada: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar imenso e verde; a água informe e multiforme; o lugar onde não estejas; o amante que não conheças; as flores monstruosas, os perfumes que fazem delirar; os gatos que se espreguiçam sobre os pianos e gemem como mulheres, com uma voz rouca e suave!

"E tu serás amada pelos amantes, cortejada pelos meus cortesãos. Tu serás a rainha dos homens de olhos verdes, cujo peito igualmente estreitei nas minhas carícias nocturnas; daqueles que amam o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que eles não conhecem, as flores sinistras que se semelham a turíbulos duma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os animais selvagens e voluptuosos que são emblemas da sua loucura".

E é por isso, maldita e adorada criança mimalha, que eu estou agora deitado a teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temerosa Divindade, da fatídica madrinha, da ama peçonhenta de todos os lunáticos.

in O Spleen de Paris, de Charles Baudelaire


Madeline von Foerster

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Beira-rio

We must leave before the dream ends.

Oscar Wilde


Agnes Obel - Riverside

domingo, 5 de dezembro de 2010

Soneto da Separação

De repente do riso fez-se pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes in O Poeta Apresenta o Poeta


Broken Social Scene - Lover's Spit

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Lilith


A imagem de Lilith, sob o nome de Lilitu, apareceu primeiramente representando uma categoria de demónios ou espíritos de ventos e tormentas, na Suméria, por volta de 3000 A.C. Por ser associada ao vento, pensava-se que ela era portadora de mal-estares, doenças e mesmo da morte. Ela é também associada a um demónio feminino da noite, na antiga Mesopotâmia. Muitos acreditam que há uma relação entre Lilith e Inanna, deusa suméria da guerra e do prazer sexual.

Segundo o Zohar (comentário rabínico dos textos sagrados), Eva não é a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou Adão, ele fê-lo macho e fêmea, depois cortou-o ao meio, chamou a esta nova metade Lilith e deu-a em casamento a Adão. Mas Lilith recusou, não queria ser oferecida a ele, tornar-se desigual, inferior. Na modernidade, isso levou à popularização da noção de que Lilith foi a primeira mulher a rebelar-se contra o sistema patriarcal.

Assim dizia Lilith: ‘‘Por que devo deitar-me debaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Porquê ser dominada por ti? Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.’’ Mas Adão se recusava a inverter as posições, consciente de que existia uma "ordem" que não podia ser transgredida. E assim, ela abandonou o Éden - é o momento em que o Sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturna, tal como na ocasião em que Deus fez vir ao mundo os demónios.

Três anjos foram enviados no seu encalço, porém Lilith recusou-se a voltar. E mesmo depois de abandonar o seu marido, ela não aceitava Eva, a sua segunda mulher, e tentaria destruir a humanidade, os filhos do adultério de Adão com Eva. Perseguiria então os homens, principalmente os adúlteros, crianças e recém-casados para se vingar.

Lilith, de John Collier

Lilith afirmou-se como um demónio e é o seu carácter demoníaco que leva a mulher a contrariar o homem e a questionar o seu poder. Desde então, Lilith tornou-se a noiva de Samael, o senhor das forças do mal.

Na tradição medieval, Lilith é muito citada entre as superstições de camponeses, por exemplo, ter um amuleto com o nome dos 3 anjos que a perseguiram para fora do Éden, Sanvi, Sansavi e Samangelaf para protecção, assim como acordar o marido que sorrisse durante o sono, pois ele estaria sendo seduzido por Lilith.

Assim surgiram as lendas vampíricas: Lilith tinha 100 filhos por dia, súcubus quando mulheres e íncubus quando homens, ou simplesmente lilims. Eles se alimentavam da energia do acto sexual e de sangue humano. Também podiam manipular os sonhos humanos, sendo os geradores das poluções noturnas. Uma vez possuído por uma súcubus, dificilmente um homem sobrevivia.

Há certas particularidades interessantes nos ataques de Lilith, como o aperto esmagador sobre o peito, uma vingança por ter sido obrigada a ficar por baixo de Adão, e a sua habilidade de cortar o pénis com a vagina, segundo os relatos católicos medievais. Conta-se, por exemplo, que Lilith surpreendia os homens durante o sono e os envolvia com toda a sua fúria sexual, aprisionando-os na sua lasciva demoníaca, e causando-lhes orgasmos demolidores. Aqueles que resistiam e não morriam, ficavam exangues e acabavam por adoecer. Por isso Lilith também está identificada com o tradicional vampiro.

Ao mesmo tempo que ela representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina.

Lilith, de Dante Gabriel Rosseti

Algumas vezes Lilith é associada à deusa grega Hécate, "A mulher escarlate", um demónio que guarda as portas do inferno montada num enorme cão de três cabeças, Cérbero. Hécate, assim como Lilith, representa na cultura grega a vida nocturna e a rebeldia da mulher sobre o homem. Lilith também é considerada um dos Arquidemónios, símbolo da vaidade.

Nos dois últimos séculos, a imagem de Lilith começou a transformar-se em certos círculos intelectuais seculares europeus, na literatura e nas artes, quando os românticos passaram a considerar mais a imagem sensual e sedutora de Lilith, em contraste com a tradicional imagem demoníaca, nocturna, devoradora de crianças, causadora de pragas, depravação e vampirismo.



Metropolis, de Fritz Lang, 1927

domingo, 28 de novembro de 2010

Benção

Remedios Varo, Música Solar, 1955

Bem hajas, ó luz do sol,
Dos órfãos gasalho e manto,
Imenso, eterno farol
Deste mar largo de pranto!

Tomás Ribeiro

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sophia

Quando eu morrer voltarei para buscar,
os instantes que não vivi junto do mar.



Filme de João César Monteiro, 1970

domingo, 21 de novembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010

Algures fora do Mundo

Esta vida é um hospital onde cada enfermo está possuído do desejo de mudar de cama. Este queria sofrer defronte do fogão, e aquele crê que se curava ao lado da janela. A mim parece-me que estaria sempre bem no lugar em que não estou, e este problema de mudar-me é uma coisa que não cesso de discutir com a minha alma.

"Dize-me tu, minha alma, pobre alma friorenta, que pensarias tu de viver em Lisboa? Deve lá fazer calor, e podias regalar-te como um lagarto. A cidade ergue-se à beira d'água; dizem que é construída de mármore, e que o povo tem tanto ódio ao vegetal que arranca todas as árvores. Eis uma paisagem a teu gosto; uma paisagem feita de luz e de mineral, com o líquido para os reflectir!"

A minha alma não responde.

"Visto que tanto gostas do repouso juntamente com o espectáculo do movimento, queres tu ir viver para a Holanda, essa terra beatificante? Talvez venhas a divertir-te nesse país cujas imagens tantas vezes admiraste nos museus. Que pensarias tu de Roterdão, tu que amas as florestas de mastros, e os navios atracados ao pé das casas?"

A minha alma fica muda.

"Batávia sorrir-te-ia talvez mais? Encontraríamos lá o espírito da Europa casado com a beleza tropical".

Nem uma palavra.- Estará morta a minha alma?

"Terás então chegado a tal grau de entorpecimento que não te comprazes senão com o teu mal? Se assim é fujamos para os países que são analogias da morte.- Já sei o que nos convém, pobre alma! Fazemos as malas para Tornéo. Vamos para mais longe ainda, se é possível: instalemo-nos no pólo. Lá o sol mal roça obliquamente pela terra, e as lentas alternativas da luz e da noite suprimem a variedade e aumentam a monotonia, essa metade do nada. Lá poderemos tomar longos banhos de trevas enquanto, para nos divertirem, as auroras boreais nos levarão de tempos a tempos as suas girândolas cor-de-rosa, lembrando  reflexos dum fogo de artifício do Inferno!"

Por fim a minha alma explode, e grita-me ajuizadamente: "Seja para onde for! Seja para onde for! contanto que seja para fora deste mundo!"

in O Spleen de Paris - pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire

Arnold Boecklin, Island of the Dead, 1880

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Rosa

Não ascendo a rosa.
Fico por espinho, crosta, remorso.

Lição do gesto
de quem retira a mão,
gotejando sangue,
em castigo
de querer possuir
a beleza da flor.

Me sufoca o ser,
me assusta o querer ser.

O que mais quero ter
é a impossibilidade do ter.

Mia Couto, idades cidades divindades

Frances MacNair, Choice, 1909

















segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

O Espelho

Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas (c. 1503-1510) - Inferno (detalhe)

Sob o manto do Diabo, a mulher é acossada por uma criatura cuja face é um espelho que a reflecte.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Ver claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade, Poesia


Clogs - "Lantern"

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 4ª e última parte

Desde então, continua a dar-me pancadas com o guarda-chuva na cabeça. Que eu saiba, jamais dormiu nem comeu nada. Limita-se simplesmente a bater-me. Acompanha-me em todos os meus actos, até nos mais íntimos. Lembro-me de que, a princípio, as pancadas me impediam de conciliar o sono; agora, creio que, sem elas, ser-me-ia impossível dormir.

Todavia, as nossas relações nem sempre foram as melhores. Muitas vezes lhe pedi, em todos os tons possíveis, que me explicasse o seu comportamento. Foi inútil: silenciosamente continuava a bater-me com o guarda-chuva na cabeça. Em muitas ocasiões lhe preguei murros, pontapés e - Deus me perdoe - até guardachuvadas. Ele aceitava as pancadas com mansidão, aceitava-as como fazendo também parte da sua tarefa. E este é exactamente o lado mais alucinante da sua personalidade: essa espécie de tranquila convicção no seu trabalho, essa carência de ódio. Enfim, essa certeza de estar a cumprir uma missão secreta e superior.

Pese embora a sua ausência de necessidades fisiológicas, sei que, quando lhe bato, sente dor, sei que é frágil, sei que é mortal. Sei também que um tiro me livraria dele. O que ignoro é se o tiro irá matá-lo a ele ou matar-me a mim. Também não sei se, quando estivermos ambos mortos, não continuará a dar-me com o guarda-chuva na cabeça. Seja como for, este raciocínio é inútil: reconheço que não me atreveria nem a matá-lo nem a matar-me.

Por outro lado, nos últimos tempos compreendi que não poderia viver sem as suas pancadas. Agora, cada vez com mais frequência, atormenta-me certo pressentimento. Uma nova angústia me corrói o peito: a angústia de pensar que, quando ele me fizer mais falta, se irá embora, e eu não mais sentirei as suaves guardachuvadas que me faziam dormir tão profundamente.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº9, 1º semestre de 2004

domingo, 7 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 3ª parte

Ele postou-se, de pé, a meu lado: com a mão esquerda segurava-se à pega de couro; com a direita brandia implacável o guarda-chuva. Os passageiros começaram por trocar tímidos sorrisos. O condutor pôs-se a observar-nos pelo espelho. Pouco a pouco avolumou-se uma grande gargalhada, uma gargalhada estrondosa, interminável.

Eu, com a vergonha, corei que nem um pimento. O meu perseguidor, alheio aos risos, continuou com as pancadas.

Desci - descemos - na ponte do Pacífico. Seguíamos pela avenida Santa Fé. Todos se voltavam estupidamente para nos olhar. Pensei em dizer-lhes: "Que é que estão a olhar, imbecis? Nunca viram um homem a bater na cabeça de outro com um guarda-chuva?". Mas também pensei que nunca teriam visto tal espectáculo. Cinco ou seis miúdos puseram-se a seguir-nos, gritando como energúmenos.

Mas eu tinha um plano. Chegado a casa, decidi fechar-lhe bruscamente a porta nas ventas. Não consegui: ele, com mão firme, antecipou-se, agarrou a maçaneta, deu um empurrão e entrou comigo.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº 9, 1º semestre de 2004

sábado, 6 de novembro de 2010

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 2ª parte

Porque, de facto, o homem não me pregava propriamente guardachuvadas; eram antes leves pancadas o que me aplicava, absolutamente indolores. É claro que tais pancadas são tremendamente incómodas. Todos sabemos que, quando uma mosca nos pousa na testa, não sentimos dor nenhuma: sentimos desconforto. Ora bem, aquele guarda-chuva era uma gigantesca mosca que, a intervalos regulares, pousava, uma vez e outra, na minha cabeça.

Convencido de que me achava perante um louco, resolvi afastar-me. Mas o homem seguiu-me em silêncio, sem parar de bater. Desatei então a correr (aqui devo salientar que há poucas pessoas tão rápidas como eu). Ele lançou-se em minha perseguição, procurando em vão assestar-me uma pancada. E o homem ofegava, ofegava, ofegava, e arquejava tanto que pensei que, se continuasse a obrigá-lo a correr assim, o meu torturador cairia morto ali mesmo.

Por isso deixei a correria e retomei o passo. Olhei-o. No seu rosto não havia nem gratidão nem censura. Só me dava com o guarda-chuva na cabeça. Pensei em apresentar-me na esquadra, dizer: "Senhor comandante, este homem está a dar-me com um guarda-chuva na cabeça". Seria um caso sem precedentes. O comandante olhar-me-ia desconfiado, começaria a fazer-me perguntas embaraçosas, talvez acabasse por prender-me.

Achei melhor voltar para casa. Meti-me no autocarro 67. Ele, sem deixar de dar-me pancadas, subiu atrás de mim. Sentei-me no primeiro banco.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº9, 1º semestre de 2004

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça - 1ª parte

Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça. Faz hoje exactamente cinco anos que começou a dar-me com guarda-chuva na cabeça. Nos primeiros tempos não conseguia suportá-lo; agora estou habituado.

Não sei como se chama. Sei que é um homem vulgar, de fato cinzento, alguns cabelos brancos, um rosto vago. Conheci-o há cinco anos, numa manhã de calor. Eu estava a ler o jornal, à sombra de uma árvore, sentado num banco da mata de Palermo. De repente senti que qualquer coisa me tocava na cabeça. Era este mesmo homem que, agora, enquanto estou a escrever, continua mecânica e indiferentemente a dar-me guardachuvadas.

Naquele momento virei-me cheio de indignação: ele continuou a aplicar-me pancadas. Perguntei-lhe se estava doido: nem pareceu sequer ouvir-me. Então ameacei-o de ir chamar um guarda: imperturbável e sereno, prosseguiu a sua tarefa. Depois de uns instantes de indecisão, e vendo que ele não desistia da sua atitude, pus-me de pé e preguei-lhe um soco na cara. O homem, exalando um ténue gemido, caiu no chão. De imediato, e fazendo, ao que parecia, um grande esforço, levantou-se e voltou silenciosamente a dar-me com o guarda-chuva na cabeça. O nariz sangrava-lhe, e nesse momento tive pena do homem e senti remorsos de tê-lo agredido daquela maneira.

Fernando Sorrentino, "Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça" (trad. Fernando Venâncio), in Ficções, nº 9, 1º semestre de 2004

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

sábado, 23 de outubro de 2010

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei logo de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calado e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E começo a morrer muito antes de ter vivido.

Deito aqui onde jazo, só uma brisa que passa.
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

Fernando Pessoa


Salvador Dali, Hércules levantando a pele do mar pede a Vénus para esperar um instante antes de acordar o amor

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Lição de Inglês


"English lesson #2" de Jean Zeboulon, excerto de "Façade" de William Walton e Edith Sitwell, dito por Jeremy Irons

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Jus a lo Mar e lo Rio


Teresa Salgueiro "Jus a lo Mar e lo Rio" MATRIZ com Lusitânia Ensemble

Jus'a lo mar é o río;
eu namorada irei
u el-Rei arma navío.
Amores, convosco m'irei.

Jus'a lo mar é o alto;
eu namorada irei
u el-Rei arma o barco.
Amores, convosco m'irei.

U el-Rei arma navío
eu namorada irei
pera levar a virgo.
Amores, convosco m'irei.

U el-Rei arma o barco
eu namorada irei
pera levar a d'algo.
Amores, convusco m'irei.

Cantiga de João Zorro (séc. XIII)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Não sei, ama, onde era

Não sei, ama, onde era.
Nunca o saberei...
Sei que era Primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)

Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era tudo meu?
(Filha, quem o adivinha?)

E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)

Qualquer dia viria
Qualquer coisa fazer
Toda aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)

Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...

Fernando Pessoa


O Espírito da Colmeia, de Victor Erice, 1973

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Aniversário









Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles



The Walkmen - I Lost You

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Encontro

Saudade, de António Carneiro

Visito esse lugar
Procuro-te nesse recanto habitual.
Sei que não estarás lá,
mas finjo ignorá-lo,
procuro pensar que saíste,
que saíste há pouco,
numa ausência breve,
como se tivesses saído
para logo regressares.
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
Sei que não virás,
conjecturo até, por vezes,
teus distantes diálogos numa praça gris
que imagino em tarde de invernia.
Então disfarço, ponho-me
a inventar, por exemplo,
uma longilínea praia deserta,
uma fina, fria, nebulosa
praia
muito silenciosa e deserta.
Pensando nela fito de novo
este lugar e digo para mim
que apenas partiste
por um breve instante.
E sigo. E de novo protelo
este encontro impossível.

Rui Knopfli, Obra Poética

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amor

Amor, de António Carneiro

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 3 de outubro de 2010

Esperança

Esperança, de António Carneiro


Saudade minha,
quando vos veria?

Este tempo vão,
esta vida escassa,
para todos passa,
só para mim não.
Os dias se vão
sem ver este dia,
quando vos veria?

Vede esta mudança
se está bem perdida,
em tão curta vida
tão longa esperança!
Se este bem se alcança,
tudo sofreria,
quando vos veria.

Saudosa dor,
eu bem vos entendo;
mas não me defendo,
porque ofendo Amor.
Se fôsseis maior,
em maior valia
vos estimaria.

Minha saudade,
caro penhor meu,
a quem direi eu
tamanha verdade?
Na minha vontade,
de noite e de dia
sempre vos teria.

Luís de Camões, Rimas

sábado, 2 de outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

História de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny de Vasconcelos, Manual de Prestidigitação (1956)

domingo, 26 de setembro de 2010

A cabeça perniciosa

The Baleful Head, de Edward Burne-Jones

May I not see this marvel of the lands
So mirrored, and yet live? Make no delay,
The sea is pouring fast into the bay,
And we must soon be gone."
"Look down", he said,
"And take good heed thou turnest not thine head."
Then gazing down with shuddering dread and awe,
Over her imaged shoulder, soon she saw
The head rise up, so beautiful and dread,
That, white and ghastly, yet seemed scarcely dead
Beside the image of her own fair face,
As, daring not to move from off the place,
But trembling sore, she cried: "Enough, O love!
What man shall doubt thou art the son of Jove;
I think thou wilt not die." Then with her hand
She hid her eyes, and trembling did she stand
Until she felt his lips upon her cheek;
Then turning round, with anxious eyes and meek,
She gazed upon him, and some doubtful thought
Up to her brow the tender colour brought.

William Morris, "The Doom of King Acrisius"

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Corrida de Sexta-Feira



Wim Mertens - Struggle for Pleasure (1982)

Este post encontrou a sua inspiração aqui.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Janelas II

Edward Hopper, Morning Sun


Edward Hopper, Excursion into philosophy


Edward Hopper, Woman-sun

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Perséfone


Perséfone é a rainha das trevas, filha da mãe terra, Deméter, e guardiã do segredo dos mortos. Hades, senhor das trevas, enlouquecido de amor pela donzela, raptou-a, enquanto colhia flores. Assim que a levou até seu reino sombrio, fez com que ela comesse a romã, fruta dos mortos (mas também símbolo do amor conjugal).

A partir de então, Perséfone estaria ligada a ele para sempre. Por ter comido a romã, Perséfone perdeu a inocência da infância para se tornar a guardiã dos segredos e mistérios dos sombrios domínios do Inferno.


Ao passar metade do ano com sua mãe Deméter e a outra metade com o seu esposo Hades, Perséfone transita livremente entre dois mundos: a realidade objectiva da luz e a subjectividade do inconsciente - a sombra.



Dead Can Dance - Persephone (the gathering of flowers) - Within the Realm of a Dying Sun

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A Amante do Tenente Francês: o livro ou o filme?

O LIVRO

A Amante do Tenente Francês, de John Fowles,  é considerado um dos primeiros romances "pós-modernos" - o autor assume-se como narrador omnisciente e até como personagem. A história gira à volta de amores proibidos na Inglaterra vitoriana e é examinada e comentada pelo autor a partir da sua perspectiva cultural dos anos 60 (quando o livro foi escrito).

Fowles conversa com o leitor e brinca com a evolução da narrativa - em determinado momento, refere que se vê forçado a  alterar o plano inicial do romance por causa das personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a hipótese de escolher entre três finais distintos!

O FILME


A obra de Fowles foi adaptada ao cinema por Harold Pinter, em 1981, com realização de Karel Reisz e interpretações de Jeremy Irons e Meryl Streep. Embora diverso do livro, o filme também segue uma linha narrativa original.

Jeremy Irons e Meryl Streep desempenham os papéis dos amantes vitorianos (Charles e Sarah) e dos actores contemporâneos (Mike e Anna) que os representam na rodagem de um filme, mantendo também eles uma ligação amorosa adúltera. Assim se entrelaçam duas histórias de amor, do passado e do presente, da ficção e da realidade(?).

Uma vez que o romance de Fowles apresenta finais alternativos, também no filme, as duas histórias de amor têm desenlaces diferentes... 



A Amante do Tenente Francês, de Karel Reisz, 1981

domingo, 12 de setembro de 2010

Jane Eyre

"First vanity, and now insurrection."



Jane Eyre, de Robert Stevenson, 1944

Jane Eyre: Manifesto Anti-Boneca de Porcelana



The vehemence of emotion, stirred by grief and love within me, was claiming mastery, and struggling for full sway, and asserting a right to predominate, to overcome, to live, rise, and reign at last: yes, - and to speak.
"I grieve to leave Thornfield: I love Thornfield:- I love it, because I have lived in it a full and delightful life,- momentarily at least. I have not been trampled on. I have not been petrified. I have not been buried with inferior minds, and excluded from every glimpse of communion with what is bright and energetic and high. I have talked, face to face, with what I reverence, with what I delight in,- with an original, a vigorous, an expanded mind. I have known you, Mr. Rochester; and it strikes me with terror and anguish to feel I absolutely must be torn from you for ever. I see the necessity of departure; and it is like looking on the necessity of death." (...)
"I tell you I must go!" I retorted, roused to something like passion. "Do you think I can stay to become nothing to you? Do you think I am an automaton? - a machine without feelings? and can bear to have my morsel of bread snatched from my lips, and my drop of living water dashed from my cup? Do you think, because I am poor, obscure, plain, and little, I am soulless and heartless? You think wrong! - I have as much soul as you, - and full as much heart! And if God had gifted me with some beauty and much wealth, I should have made it as hard for you to leave me, as it is now for me to leave you. I am not talking to you now through the medium of custom, conventionalities, nor even of mortal flesh; - it is my spirit that addresses your spirit; just as if both had passed through the grave, and we stood at God's feet, equal, - as we are!"
Charlotte Bronte, Jane Eyre (cap. XXIII)

sábado, 11 de setembro de 2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Curiosidades estéticas



O mais importante na vida
é ser-se criador - criar beleza.

Para isso,
é necessário pressenti-la
aonde os nossos olhos não a virem.

Eu creio que sonhar o impossível
é como que ouvir uma voz de alguma coisa
que pede existência e que nos chama de longe.

Sim, o mais importante na vida
é ser-se criador.

E para o impossível
só devemos caminhar de olhos fechados
como a fé e como o amor.

António Botto, Canções e Outros Poemas

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Janelas I

Edward Hopper, Janela na Noite, 1928


Edward Hopper, Quarto em Nova Iorque, 1932


Edward Hopper, Onze da Manhã, 1926

domingo, 5 de setembro de 2010

Indefinido

Gerhard Richter, Ema - Nu numa Escada, 1966

Não tenho nenhuma intenção, nenhum sistema, nenhuma direcção. Não tenho nem programa, nem estilo nem exigência. Não penso nada bem sobre os problemas profissionais, temas de trabalho, variações até à perfeição. Fujo de todo o compromisso, não sei o que quero, sou inconsequente, indiferente, passivo; amo o indefinido, o interminável e a incerteza contínua.
Gerhard Richter

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

About the meaning of life # 6

Porque é que este sonho absurdo a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.

José Gomes Ferreira

domingo, 29 de agosto de 2010

Quadras

Alma

A minha alma é terra-a-terra
não ousa voar ao céu
por muito amor do mistério
e respeito do seu véu.

Caminho

Se não sabes o caminho
e a sorte nenhum prefere
toma então pelo mais duro
é esse o que Deus te quer.

Imaginação

A face oculta da Lua
só banha de seu luar
aqueles que não o vendo
o sabem imaginar.

Loucura

Só o louco sem juízo
faz loucuras de perder-se
conserve o juízo o louco
porque ser-se dois é ter-se.

Perfeição

Aperfeiçoa-te ao máximo
em tempo que nada valha
pondo toda a tua pressa
no que de tempo é migalha.

Realidade

Talvez chegues tu a ver
que só o nada é real
e que a partir de não ser
te construirás total.

Serenidade

Não digas bom o prazer
nem chames ruim à dor
toma calmo teu assento
de tranquilo espectador.

Solidão

Tudo na vida é comum
tudo no mundo concorre
mas sozinho é que se nasce
e só o próprio é que morre.

Sonho

Sonhei que a vida era sonho
e sonhando despertei
para entrar num outro sonho
de que jamais acordei.

Agostinho da Silva, Citações e Pensamentos

domingo, 15 de agosto de 2010

Nada

nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença

Não colecciones dejectos o teu destino és tu

Despe-te
não há outro caminho


Eugénio de Andrade, in "Véspera da Água"

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

About the meaning of life # 5


Always Look On The Bright Side Of Life! - Monty Python

Some things in life are bad
They can really make you mad
Other things just make you swear and curse.
When you're chewing on life's gristle
Don't grumble, give a whistle
And this'll help things turn out for the best...
And...always look on the bright side of life...
Always look on the light side of life...

If life seems jolly rotten
There's something you've forgotten
And that's to laugh and smile and dance and sing.
When you're feeling in the dumps
Don't be silly chumps
Just purse your lips and whistle - that's the thing.

And...always look on the bright side of life...
Always look on the light side of life...

For life is quite absurd
And death's the final word
You must always face the curtain with a bow.
Forget about your sin - give the audience a grin
Enjoy it - it's your last chance anyhow.

So always look on the bright side of death
Just before you draw your terminal breath

Life's a piece of shit
When you look at it
Life's a laugh and death's a joke, it's true.
You'll see it's all a show
Keep 'em laughing as you go
Just remember that the last laugh is on you.

And always look on the bright side of life...
Always look on the right side of life...
(Come on guys, cheer up!)
Always look on the bright side of life...
Always look on the bright side of life...
(Worse things happen at sea, you know.)
Always look on the bright side of life...
(I mean - what have you got to lose?)
(You know, you come from nothing - you're going back to nothing.
What have you lost? Nothing!)
Always look on the right side of life...

letra e música de Eric Idle

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

In Memoriam

Se te Queres Matar

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos, in "Poemas"



CocoRosie & Antony - Beautiful Boyz

Para o Paulo
(1979-2009)
RIP

sábado, 31 de julho de 2010

Time in a Bottle


If I could save time in a bottle
The first thing that I'd like to do
Is to save every day
Till Eternity passes away
Just to spend them with you

If I could make days last forever
If words could make wishes come true
I'd save every day like a treasure and then,
Again, I would spend them with you

But there never seems to be enough time
To do the things you want to do
Once you find them
I've looked around enough to know
That you're the one I want to go
Through time with

If I had a box just for wishes
And dreams that had never come true
The box would be empty
Except for the memory
Of how they were answered by you

But there never seems to be enough time
To do the things you want to do
Once you find them
I've looked around enough to know
That you're the one I want to go
Through time with

I Shall Not Care

When I am dead and over me bright April
Shakes out her rain-drenched hair,
Though you should lean above me broken-hearted,

I shall not care.

I shall have peace, as leafy trees are peaceful
When rain bends down the bough;
And I shall be more silent and cold-hearted
Than you are now.

Sara Teasdale

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Actor e Espectador

António Feio em O Que Diz Molero, adaptação teatral de Nuno Artur Silva


«Molero Diz», disse Austin, «que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava , muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva». (...)

Dinis Machado, O Que Diz Molero

terça-feira, 27 de julho de 2010

Island Blues


Koop -  island blues

O Duplo


Sugerido ou estimulado pelos espelhos, as águas e os irmãos gémeos, o conceito do Duplo é comum a muitas nações. É verosímil supor que sentenças como "Um amigo é um outro eu" de Pitágoras ou o "Conhece-te a ti mesmo" platónico se inspiraram nele. Na Alemanha chamaram-lhe o Doppelganger, na Escócia o Fetch, porque vem buscar (fetch) os homens para os levar à morte. Encontrar-se consigo mesmo é, portanto, ignominioso; a trágica balada Ticonderoga de Robert Louis Stevenson refere uma lenda sobre este tema. Recordemos também o estranho quadro How they met themselves de Rossetti.

Para os judeus, em contrapartida, o aparecimento do Duplo não era presságio de uma morte próxima. Era a certeza de ter alcançado o estado profético. Assim o explica Gershom Scholem. Uma tradição recolhida pelo Talmude narra o caso de um homem à procura de Deus, que se encontrou consigo mesmo.

No relato William Wilson de Poe, o Duplo é a consciência do herói. Este mata-o e morre. Na poesia de Yeats, o Duplo é o nosso anverso, o nosso contrário, o que nos complementa, o que não somos nem seremos.

Plutarco escreve que os Gregos deram o nome de "outro eu" ao representante de um rei. 


in O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges

sábado, 24 de julho de 2010

Esperança

George Frederick Watts, Hope, 1885


Pandora não resistiu à curiosidade, abriu a caixa e os males escaparam. Depressa a fechou mas somente se conservou um único bem, a esperança. E dali em diante, foram os homens afligidos por todos os males.

Mas como é que uma caixa contendo todos os males da humanidade também guarda a esperança? Esperança - a palavra em grego é ἐλπίς / elpís, que se define como a espera de alguma coisa; a tradução mais correcta será antecipação. 

Se Pandora não tivesse fechado rapidamente a caixa, os homens sofreriam não só dos dos males como também do conhecimento antecipado deles. A vida seria impossível com o temor perpétuo dos males por vir e com o conhecimento antecipado da hora da morte...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Animais dos Espelhos

Em qualquer tomo das Cartas Edificantes e Curiosas publicadas em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o padre Zallinger, da Companhia de Jesus, projectou um exame das ilusões e erros do vulgo de Cantão: num censo preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém tinha tocado, mas que muitos diziam ter visto no fundo dos espelhos. O padre Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado pela sua pena ficou inacabado; cento e cinquenta anos depois Herbert Allen Giles retomou a tarefa interrompida. Segundo Giles, a crença do Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época lendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não eram, como agora, incomunicáveis. Além disso, eram muito diferentes; não coincidiam nem os seres, nem as cores, nem as formas. Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz, entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. A sua força era grande, mas ao fim de sangrentas lutas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Derrotou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e impôs-lhes a tarefa de repetir, como numa espécie de sono, todos os actos dos homens. Privou-os da sua própria força e aspecto, e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, no entanto, hão-de sacudir essa letargia mágica.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho veremos uma linha muito ténue e a cor dessa linha será uma cor não parecida com nenhuma outra. Depois, hão-de despertar as outras formas. Gradualmente tornar-se-ão diferentes de nós e não nos imitarão. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Juntamente com as criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.

No Yunnan não se fala do Peixe, mas do Tigre do Espelho. Outros entendem que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.

in O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges


Jia Tian Shi, Espelho

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Eros e Thanatos

Joanna Crobak, 2009-2010


Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"

Antero de Quental
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...